UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Digitalização unilateral

terça-feira, 26 de julho de 2016

Digitalização unilateral

Fui ler a matéria que Sergio Matsuura escreveu sobre a revolução digital no jornalismo em busca de um bom texto informativo e fiquei a ver navios. O que lá encontrei foi a própria negação de um dos protocolos básicos de um jornalismo que se preze: mostrar um tema sob diferentes ângulos, considerando perspectivas e visões distintas sobre o mesmo.

Não que Matsuura não tenha se dado ao trabalho de buscar fontes de credibilidade para apresentar um apanhado sobre o impacto do mundo digital na profissão do jornalista. A questão é a unilateralidade dessas fontes ao abordar o fenômeno da digitalização da prática jornalística.

Joshua Benton, diretor do Nieman Journalism Lab, da Harvard University, acredita, por exemplo, que "para o jornalista, a tecnologia trouxe ferramentas antes impensáveis, que facilitaram, muito, o dia a dia da produção de notícias". Uma maior disponibilidade de bancos de dados públicos e digitalizados, municiados com ferramentas de buscas, também é reconhecida por José Roberto Toledo, do conselho da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. 

Ambos convergem para o mesmo ponto: "o jornalista hoje precisa de conhecimentos até pouco tempo impensáveis para a carreira". A nova lista de saberes e competências inclui conhecimentos em áreas como estatística, matemática e linguagens de programação, incluindo-se aí o manejo de infográficos.

"Não que o trabalho clássico do jornalista tenha sido substituído", prossegue a matéria. "Ele ainda é responsável por apurar, investigar, checar informações e escrever um bom texto, mas também precisa saber 'entrevistar os dados', para se municiar com informações mais precisas durante o trabalho de apuração". 

Até aqui, parece difícil discordar. A questão, contudo, são os lados "ausentes" da história. A digitalização, considerada isoladamente em relação ao fenômeno da convergência, diz muito pouco do perfil do jornalista que permanece hoje, de fato, empregado nas redações. 

Ora, a reunião de várias tecnologias interativas em uma mesma plataforma fez muito mais pelo jornalismo diário do que aumentar o nível de exigência em termos da qualificação exigida dos jornalistas. Ela provocou o enxugamento de redações com demissões em massa, aumento da pressão sobre a produtividade diária (menos gente para fazer mais matérias) e uma flexibilização no nível de especialização temática que o jornalista ia adquirindo dentro das editorias tradicionais.

O resultado disto está um pouco longe do perfil de "entrevistador de dados". Do ponto de vista prático, o jornalista dos veículos diários é atualmente uma espécie de faz-tudo, apressado, superficial, sem tempo sequer para entrevistar pessoas, quanto mais banco de dados de cuja linguagem ele tem um remoto domínio. Os níveis de estresse no trabalho são alarmantes. E, para dar conta do recado, só mesmo lançando mão de muita matéria pré-formatada, adquirida junto às agências de notícias. E lá se vai o tal do jornalismo investigativo bueiro adentro.

Já falei isso mais acima, mas não custa retomar: não quero dizer que Joshua Benton e José Roberto Toledo estejam errados. Faltou, contudo, chamar outros atores para completar a narrativa proposta. Os jornalistas desempregados e os sindicatos que os representam, teriam, certamente, contribuído para uma visão menos unívoca sobre o fenômeno da digitalização.

Fica aí a sugestão.

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