UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Gobineau-zando a Ciência

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Gobineau-zando a Ciência

A notícia tinha passado despercebida, apesar da sua importância. Mas ainda dá tempo de retoma-la ainda que ela caia no esquecimento.

É bem verdade que, de tempos em tempos, isso acontece mesmo: quando uma parte representativa da comunidade científica acredita que a discussão sobre a existência (ou não) de raças entre seres humanas havia chegado a um termo, eis que um pesquisador vem a público e, munido de novos dados de pesquisa, argumenta que a raça ainda possui relevância para a classificação genética da população humana.

Há, contudo, duas novidades nesta notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo online do dia 22 de setembro de 2016, em relação às precedentes. A primeira novidade é que, desta vez, a retomada do tema racial não acontece propriamente pela voz de um cientista, mas pela de um jornalista científico. Em entrevista telefônica ao também jornalista de ciência Reinaldo José Lopes, da Folha de S. Paulo, o jornalista britânico Nicholas Wade, 74 anos, explica a razão pela qual ele decidiu dedicar todo um livro, intitulado Uma Herança Incômoda, ao tema: "Senti que era meu dever contar ao público o que estava sendo descoberto sobre a natureza das raças humanas – os fatos estavam todos lá, na literatura científica, mas colocados de uma forma oblíqua, por meio de uma série de eufemismos."

Detrator da obliquidade e dos eufemismos, Wade descreve sua obra nos seguintes termos: "O livro tem duas partes. A primeira, sobre as diferenças genéticas mais gerais entre as raças humanas, não me parece algo controverso. A segunda parte do livro, de fato, é uma conjectura, um palpite bem informado" sobre o fato de que "parece haver uma diferença sutil no comportamento social nas várias regiões do mundo, em especial no que se refere ao nível de confiança entre os indivíduos". "Ao longo da história," explica o autor, "isso levou ao desenvolvimento de civilizações com características distintas", o que seria supostamente explicado pela variância genética entre populações".

Bem, até aqui, nada de aparentemente muito novo em relação ao racismo científico do Séc. XIX, quando as variações culturais entre as populações humanas costumavam ser explicadas em função do fenótipo (aparência) do indivíduo (sim, já existiu uma época em que a ciência sustentava este tipo de teoria). A segunda novidade que vejo na abordagem do jornalista Wade reside no entendimento que ele tem dos cientistas sociais - ou, mais propriamente, do impacto que ele acredita que sua obra terá junto a estes últimos: "Não acho que mais evidências farão com que os que não aceitam a ideia de raça mudem de opinião. É a mesma coisa com os criacionistas que defendem a verdade literal da Bíblia – as evidências da evolução estão aí aos montes, mas nem por isso eles mudam de ideia. Os cientistas sociais são muito parecidos com os criacionistas nesse aspecto."

A opinião de Wade sobre a posição dos cientistas sociais merece, porém, uma ressalva importante: se, por um lado, o estudo sobre as raças parecia ter perdido relativa capacidade explicativa para a Genética até a publicação deste livro, por outro, a questão racial continua tendo muita relevância no campo das Ciências Sociais. E a razão para isto é simples: a despeito da (in)existência de qualquer base genética concreta naquilo que se entende por "raça", os cientistas sociais se interessam em compreender porque as pessoas ainda continuam, nos dias de hoje, a emitir julgamentos e fazer opções em função da percepção de características fenotípicas das pessoas.

Portanto, ao contrário do que o Sr. Wade anuncia, não é de todo exato dizer que os cientistas sociais não se interessam pela raça, já que a crença na sua existência continua mobilizando o comportamento de muitos e está relacionada a fenômenos sociais tais como o preconceito de raça, de cor, de gênero e de origem.

Aliás, livros como Uma Herança Incômoda apenas confirmam a intuição dos cientistas sociais de que o melhor caminho para se compreender a permanência do termo "raça" na pauta das discussões científicas, em pleno Séc. XXI, tenha muito pouco a ver a questão genética propriamente dita - como pretende Nicholas Wade - e muito mais com o próprio fenômeno do racismo.

P.S.= O título da postagem é uma referência ao francês Arthur de Gobineau, um dos grandes teóricos do racismo científico do Séc. XIX. Amigo próximo de D. Pedro II, Gobineau escreveu Essai sur l'inégalité des races humaines ("Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas") depois ter morado no Brasil.

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