UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: setembro 2014

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Alascando

Findas as narrativas de viagem em terras estrangeiras, cá estamos nós de volta aos factoides do dia. Durante esse tempo que eu andei ausente do país e do blog (mais do segundo do que do primeiro), muita coisa andou acontecendo.

Por exemplo, lá no Alasca a coisa andou pegando fogo, depois que repórter pró-legalização da maconha se demitiu ao vivo (e a cores) no canal KTVA (http://f5.folha.uol.com.br/televisao/2014/09/1520328-pela-maconha-reporter-se-demite-ao-vivo-no-alasca-assista.shtml). De acordo com notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo online, a incendiária Charlo Greene pediu demissão logo após tascar, em plena rede alascana, que era "a verdadeira proprietária do Alasca Cannabis Club".

Sem entrar no mérito da causa abraçada e da verdadeira motivação da repórter de fazê-lo ao vivo na TV local, a atitude de Charlo só me fez pensar naqueles rompantes que levam as pessoas a tomar atitudes extremas e não premeditadas. Teria sido tal atitude resultado de uma súbita descarga hormonal de proporções monumentais na circulação sanguínea da jornalista ou de oscilações cósmico-energéticas advindas das recentes ejeções de massa coronal do nosso astro rei (http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/09/explosao-dupla-de-tempestade-solar-ruma-para-terra-e-traz-preocupacoes.html)?

Difícil conjecturar à distância razoável que nos separa do Alasca e da nobre dama. Talvez a atitude tenha sido motivada pelo simples fato de que o verão no Alasca é curto demais e que a colheita urge, o que levou a distinta repórter a redirecionar seu precioso tempo para atividades afins à Cannabis.

Pois bem, dizem os historiadores que um rompante pode mudar o curso dos fatos mais relevantes da história da Humanidade, seja para o Bem ou para o Mal. Rompantes de mau humor podem estragar relacionamentos e amizades. Rompantes de generosidade e gratidão tornam a vida mais doce e agradável.

A dúvida em saber para que lado correr, pense à maneira dos alasquianos: o verão é curto e a colheita urge. Mas lembre-se de que colhemos o que plantamos, inevitavelmente.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Peruanas - Parte 2

Posso dizer que conheci dois lados do Peru: verso e avesso, tudo bem ao gosto da permanente dualidade inca. O que equivale a dizer qe conheci as mazelas das rotas turísticas oficiais e extra oficiais que ligam o Brasil até aquele país.

Isto posto, acho bestamente desnecessário bater na tecla de que o Machu Picchu foi o ápice da minha curta viagem ao Peru. Aquilo é o mais verdadeiro lugar-comum turístico do planeta, mas nem por maravilhosamente surpreendente: saí de lá com o queixo no chão. Como uma amiga bem definiu: "este lugar não tem explicação". Não, não tem mesmo.


O que não quer dizer que essa filial do paraíso na terra não tenha lá o seu preço tabelado. No início, lamentei um bocado pelos U$250-300 deixados na agência turística local para ter acesso ao kit van-trem-ônibus que me levou até aquele solo sagrado. No fim das contas, saí de lá querendo dar o meu reino e o meu cavalo por um retorno ao sítio arqueológico na época dos solstícios.


Dica boa para dias sem chuva: descer no km 104 e subir o resto a pé.

Muros de pedras em 4 estilos: pedra bruta, arrimo, construção popular e templo (este último é o da foto) .

Sítio arqueológico em névoas. Só mais tarde pude ver o entorno. E que entorno.

Muros inclinados: especialidade inca.

Casas e janelas.

Árvores: uma das poucas que restaram.
O conjunto da obra

Mas teve o outro lado também: a extra-oficialidade do turismo em terras latino-americanas. Explico: a companhia de ônibus que me levou de Rio Branco até Cusco oferece apenas duas saídas por semana e, consequentemente, apenas dois dias de retorno também. Fato é que não tive lá muita escolha: ou voltava de ônibus até o meio do caminho e baldeava o resto, ou perdia meu voo para a Roça Grande (também conhecida como Belo Horizonte). Baldeemos, pois!

A viagem de ônibus de Cusco até Puerto Maldonado, que começou às 21h, já foi um tanto conturbada. O cidadão que se sentou ao meu lado tinha mais de 1m90cm e pernas mais longas que as do Papaléguas, o que fez da travessia ao sabor das curvas tortuosas da estrada um verdadeiro suplício: a sensação foi de emparedamento. Como se não bastasse isso e o aquecimento do ar no talo, o ônibus ainda resolve quebrar no meio do caminho. Resultado: duas horas parados na estrada, rodeados por montanhas em neve. O que, obviamente, resultou em duas horas de atraso na chegada na rodoviária de Puerto Maldonado.

Chegada na rodoviária de Puerto Madonado foi às 8h30. Aqui começa a epopeia do transporte coletivo alternativo. Como chegar até Rio Branco? A receita já tinha me sido dada: pegue um táxi (nada mais que um triciclo com carroceria) até o chamado Guión Ica, de onde saem as vãs para Ñapari, fronteira com o Brasil.

Logo na porta da rodoviária de Puerto Maldonado, um leilão de preços para o táxi. Peguei o que gritou o preço mais baixo, com plena convicção de que ainda estava pagando muito acima do justo. Paciência.

Preço de táxi é no leilão! Quem dá mais, quem dá mais?

As carrocerias são uma atração à parte. Tem de todos os modelos e cores do arco-íris.
 
No Guión Ica, 50 minutos de espera até que a vã completasse todos os assentos. E um sol de rachar! Banheiro? Uma garagem que poderia ser oficina mecânica (ou não) me ofereceu um "urinário", que correspondia a um prosaico ralo no chão. Agradeci. Era aquilo ou nada.

Na van, a parte bacana da travessia: ventão no rosto, paisagem na janela. Abri minha mochila e peguei o saco de bananas desidratadas tipo chips que havia comprado para comer em Machu Picchu e dividi com minhas vizinhas de cadeira, uma jovem grávida e uma senhora idosa. A viagem ficou, digamos, mais crocante.

Van para Ñapari

Isso não quer dizer que eu tenha chegado facilmente em Ñapari. Nada disso! A van ia só até Iberia, no meio do caminho. Lá chegando, consegui pegar outro carro que estava de saída para Ñapari. Não soubesse o país onde estava, diria que minhas novas vizinhas de cadeira eram muçulmanas. Mas vai que eram mesmo...
Mulheres de véu, mas sem grinalda.
 Em Ñapari, a alfândega para sair do Peru e o posto da Polícia Federal para entrar no Brasil. A do Peru, consegui passar por volta das 13h, antes que a funcionária saísse para almoçar. Adiantou alguma coisa? Não. Só tinha euzinha para pegar o táxi que me levaria a Brasilândia, próximo ponto de baldeação. Solução: esperar no sol rachando por mais companheiros de viagem.

Uns 40 minutos depois, chegam aquelas que seriam as minhas companheiras de jornada dali para frente: três jovens profissionais do sexo que voltavam da labuta em terras estrangeiras. Contrariamente a mim, que voltava muitos dólares e reais mais pobre, as jovens profissionais voltavam com a carteira cheia. As indumentária também era contrastante: de um lado, euzinha de camiseta Hering de manga, calça e tênis de trekking; de outro, micro-shortinhos, mini-blusa e sandalinhas. Ponto para elas, pois o calor era de uns 50ºC à sombra.

Alfândega do Peru

 Posto da Polícia Federal

O problema é que as meninas não estavam com pressa alguma, contrariamente a esta que vos escreve. Além de eu e o motorista do táxi termos que esperar pela reabertura da alfândega do Peru, cuja funcionária havia saído para almoçar, as jovens damas ainda resolveram bater um prato-feito em Assis Brasil, primeira cidade do nosso lado da fronteira, antes de pegar estrada. Alternativas? Não havia. Nenhuma outra alma viva para dividir o táxi na fronteira. O jeito foi esperar.

Saída de Assis Brasil às 15h para chegar em Brasilândia às 17h30. No caminho, entre um cochilo e outro, ouvi todas as peripécias possíveis e imagináveis do mundo do baixo meretrício. Em que período do ano rodar a bolsinha em Salvador? Sabia que aquela moça cobra das própria colegas de profissão para dar carona até o cabaré? Como é que aquela moça feia e cabeçuda consegue tantos gringos? E quando aquela outra colocou silicone? Essas são perguntas que eu jamais conseguiria responder se não tivesse feito este trecho da estrada em companhias dessas três jovens profissionais do sexo.

Lá em Brasilândia, houve mais uma troca de táxi. Desta vez, o motorista gostava de música sertaneja e ar condicionado no talo, o que me fez agradecer aos céus por estar de tênis e calça de trekking naquela hora. Por pouco, não neva do lado de dentro.

Tirando a temperatura polar, a trilha sonora e os pormenores do baixo meretrício que continuaram sendo citados incessantemente, a coisa estava indo até bem. Até que o motorista resolve avisar: "tem barreira ali na frente, todo mundo de cinto de segurança". Foi aí que eu reparei que eu era a única de cinto até o momento. O motorista reduz e os outros quatro começam a catar seu respectivo cinto.

Passagem pela barreira da Polícia Rodoviária Federal com os vidros baixados, para os guardas verem lá dentro. Mas verem o quê? Ora, para ver que uma das meninas não tinha, de fato, conectado o cinto da fivela. "Para o carro, por favor", disse o guarda. O motorista obedeceu. O guarda olha, manda abrir o porta-malas. Começa a revista das bagagens delas (as minhas duaas mochilinhas estavam comigo, entre as minhas pernas, no banco da frente). "Quê que eu tô fazendo aqui?", perguntei aos meus botões. Fingi que não era comigo e por lá fiquei, enquanto as jovens profissionais tentavam engalobar o guarda com aquele charme típico da profissão. Mas parece que não funcionou. E lá se foram os quatro - o motorista e as três jovens - até um balcão para ouvir sermão do guarda. Enquanto o motorista era multado, fui lá pedir para usar o banheiro. Banheiro limpinho. Já estava até esquecendo o que é isso.

Colhida a multa e ouvido o sermão, pé na estrada. O motorista pisou no acelerador. Perguntei quanto tempo tinha ainda até Rio Branco e pedi para ele me deixar na rodoviária internacional da capital do Acre.  Na chegada, o danado ainda tentou me extorquir mais R$10 reais pelo traslado, alegando aumento na tarifa depois do dia 1º de setembro. Neguei, mostrando o carimbo do dia 03 no meu passaporte e dizendo que não tinha havido aumento algum. Não paguei. As meninas seguiram caminho com o motorista, sabe-se para onde. Talvez elas quisessem negociar uma proposta alternativa de pagamento, sei lá...

No fim das contas, levei 22h até chegar em Rio Branco, sã e salva, mas ávida por um banho. Narrei brevemente os fatos para a minha irmã, que foi me buscar na rodoviária. "Tirou fotos das meninas?", perguntou ela. Disse que não, pois queria proteger a integridade delas. "Que integridade?", tascou minha irmã. Sei lá. Integridade é a única coisa que ninguém pode tirar da gente.

Fim da epopeia. Banho tomado. Caso contato. Agora vou dormir.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Peruanas - parte 1

E, de repente - não mais que de repente - Cusco. A cidade "umbigo do mundo" faz jus à sua vocação. De modo que seu ar de capital de império acabou sobrevivendo, ainda que aos trancos e barrancos, ao fim do domínio inca.

Cusco: Plaza de Armas


Em tempos de eleições presidenciais no Brasil e de debates acirrados sobre o papel da fé na política, visitar Cusco foi, no mínimo, intrigante. Só os mais simplórios ousam ignorar que a fé cristã violou as crenças ditas "pagãs" dos habitantes das Américas, principalmente os seus alicerces, o que fica evidente até do ponto de vista literal: os colonizadores espanhóis construíram suas edificações sobre construções incas, fazendo destas seu alicerce. Metaforicamente  falando, os alicerces também foram violados, visto que toda crença é um alicerce moral. Mas os incas também tinham lá suas veleidades: eles sequestravam os ídolos dos povos subordinados e os guardavam no Qorakancha, o templo do Deus Sol, para fins de chantagem teológica.

Qorakancha, o Templo do Deus Sol.

Igreja sobre construções incas

Os deuses dos povos dominados eram trazidos também para o Qorakancha

É por essas e por outras que nem mesmo a beleza da arquitetura incaica conseguiu me convencer a reivindicar o retorno do Estado teocrático. Por outro, essa mesma arquitetura me fez perceber a que ponto a expansão imperialista dos incas estava conectada com uma visão de mundo religiosa. A fé moveu mundos e fundos e interveio diretamente na arquitetura daquelas montanhas densamente povoadas, onde cidades e mais cidades foram habilmente esculpidas: estima-se que o império tenha reunido 11 milhões de súditos no seu apogeu. E a capital disso tudo, como já disse, era Cusco.

Mercado San Pedro, ao lado de igreja do mesmo nome.
 
Caminho para Saqsayhuamán, a cabeça da cidade-puma.
Para além de uma Cusco histórica, experimentei uma Cusco plena de paradoxos: comércio de luxo, população pobre, preços superfaturados, lucro terrivelmente mal distribuído. Mas nada, absolutamente nada me tirou a certeza de que este é, por assim dizer, um dos mais belos umbigos da mãe terra.

Em Cusco é assim: o que era uma simples obra de encanamento acaba virando um sítio arqueológico (Plaza de Armas).

O famoso show do Centro Qosqo de Arte Nativo

Moral da história (se é que há alguma): não há fé que justifique a impossibilidade de convivência entre o meu e o seu alicerce. Ou sobre alicerce algum, se eu entender que posso viver à deriva das crenças e alicerces.

O hipnotizando sítio arqueológico de Saqsayhuamán.

Lhamas cheias de si esnobam os turistas: bem feito para eles!

P.S. = Não, eu não me esqueci de Machu Picchu. Mas ela merece um capítulo à parte. Quem sabe amanhã?

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Acreanas

Quando eu disse que vinha para o Acre, alguns desavisados me perguntaram: "o Acre existe mesmo?"

Sim, meus caros, o Acre existe! Mas ele existe também na sua condição de ficção política e, por esta razão, não menos ficcional do que qualquer outro estado, como Minas Gerais ou São Paulo. O Acre é uma especie de ficção política nascida de uma negociação de Estado com Bolívia e consumada em uma prática de nacionalização de fronteiras territoriais. E onde quer que você vá, lá está a bandeira do Acre para lembrar ao passante que o território virou estado ainda na década de 1960. Vai-se o território, ficam as práticas de demarcação do território.


Rio Branco, capital do império, mostra que nem só de bandeiras hasteadas vive o Acre. Seu rio é seu grande patrimônio. Com ele, aprendemos as regras da fluência da vida e da permanência da mudança. Aprendemos, inclusive, sobre a possibilidade de mudanças sem crise. O rio é um velho que sabe das coisas!




O rio nos levou e nos trouxe de volta da mata, outro patrimônio sem preço. Depois de pularmos um abobral - cuidado com as ramas! - e saudarmos bananeiras e tangerineiras ribeirinhas, descobrimos que a mata nativa estava logo ali, a dois ou três passos da margem. 






O tempo e a distância que nos levaram até esta magnifica Samaúma, contudo, estão alem de qualquer medida. Não se tem notícia, no mundo dos homens, de quanto tempo se leva para chegar até ela. Diz-se que a Samaúma começa com as raízes neste mundo e só vai terminar em outra dimensão, lá onde as galhas se espalham e os olhos não alcançam mais. Segundo as crenças dos nativos desta terra, a Samaúma é morada dos Espíritos. Fomos lá ver. Ao que tudo indica, estavam todos dormindo quando chegamos.







O rio, a mata, a samaúma... e as amizades. O Acre nos presenteou com seus quatro patrimônios. E nos deixou de olhos vidrados no céu, plenos de gratidão. Quanta beleza nessa terra!