UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: dezembro 2016

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Retrospectiva 2016 - lado B

Como entender o ano de 2016?

Como o assunto é complexo, melindroso e altamente controverso, minha proposta é usar uma metáfora. Sim, caro leitor, é assim que a coisa funciona: quando a coisa aperta e gente não sabe como dar conta do recado, a regra é apelar para uma metáfora.

Pois bem, vamos a ela.

Notícia publicada hoje no jornal O Globo online (em parceria com agências internacionais) coloca o Centro Médico Universitário de Utrecht (UCM) sob a luz dos holofotes. Segundo a notícia, 26 mulheres que realizaram fertilização in vitro nesta instituição "podem ter tido seus óvulos fertilizados pelo esperma errado."

Ainda de acordo com a notícia, uma investigação foi aberta após a detecção de um "erro processual", a saber: "houve uma mistura dos espermatozóides de casais que realizaram o procedimento entre abril e novembro de 2016, dando margem para que as mulheres fossem fecundadas pelo esperma de outros homens que não os seus parceiros." Trocando em miúdos, "há uma chance de que os óvulos tenham sido fecundados por espermatozóides além daquele do pai pretendido."

Para coroar a história de glória, sabe-se que metade das mulheres submetidas ao tratamento de fertilidade já engravidou e que algumas delas já deram, inclusive, à luz. O erro processual vale também para os casais que possuem embriões congelados.

Diante do exposto, se tivéssemos que definir 2016 de maneira bastante breve, ele seria o ano gerado pelo esperma do pai errado, com o qual tivemos que conviver durante 12 meses.

Simples assim.

Com uma ressalva, claro: os pais das crianças nascidas desses erros processuais terão que conviver com o erro pelo resto da vida. Já nós...

sábado, 24 de dezembro de 2016

Retrospectiva 2016 - lado A

Alô, alô, você que sobreviveu até aqui: o que você e o Brasil podem esperar das retrospectivas de um ano como 2016?

A Folha de S. Paulo até fez um esforço - louvável, reconheço - de compilar acontecimentos positivos que ocorreram ao longo de 2016. Porém, algo de muito grave deve ter ocorrido em algum ponto entre a intenção e o resultado.

Em primeiro lugar, a lista é tão curta quanto o saldo bancário da maioria dos trabalhadores desse país, nela constando apenas oito itens sucintamente comentados. Em segundo lugar, desses oito tópicos, dois fazem alusão a países próximos - Chile (início da não cobrança de mensalidades no ensino superior) e Colômbia (selado acordo de paz entre governo e as FARC). E um terceiro fala do cenário internacional ao abordar a entrada em vigor do Tratado de Paris, que obriga os países signatários a adotarem medidas de medidas de combate à mudança climática.

Dentre os cinco acontecimentos positivos restantes, dois deles são de alcance regional, isto é, dizem respeito especificamente ao estado de São Paulo. Dentre estes últimos, figuram o fim a crise hídrica no sistema de abastecimento da Cantareira e a redução do número de acidentes fatais nas marginais Tietê e Pinheiros.

Das três notícias que nos sobraram, duas são bastante controversas. Por exemplo, a autorização da vacina da dengue foi vista com reservas por epidemiologistas, pois sua eficácia não foi considerada alta (cerca de 66% das pessoas imunizadas se tornaram, de fato, resistentes; vacinas consideradas eficazes costumam apresentar taxa superior a 90%). Além disso, seu preço elevado (R$133) seria um dificultador do acesso das camadas mais desfavorecidas da população brasileira ao medicamento. Já a  alegada "desaceleração da alta da inflação", considerada na compilação "a menor em meses de novembro desde 1998", comemora um tiro no pé: a inflação continua alta - acima de 6% ao mês - e ainda bastante acima do 4,5% fixados como meta pelo governo.

Sobrou, então, um último acontecimento de 2016 indiscutivelmente positivo: pela primeira vez na história desse país, um longa metragem de animação brasileiro concorreu ao Oscar. "A produção 'O Menino e o Mundo', do paulista Alê Abreu, tornou-se a primeira do país a disputar o Oscar na categoria melhor longa de animação", relata orgulhosamente a notícia. 

Mesmo tendo a perdido a disputa final, "O Menino e o Mundo" conseguiu o improvável: trazer alguma animação para a vida dos brasileiros. Sem trocadilhos, dessa vez...

Quanto a você, caro leitor, aqui vai um conselho gratuito de minha própria lavra: trate de elaborar você mesmo sua lista pessoal e intransferível de acontecimentos positivos que ocorreram neste ditoso ano de 2016. Porque, se depender das compilações, vamos preferir não passar o ano a limpo.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

O milagre

Os arautos da Armagedom devem estar tocando trombetas e a turma do "quanto-pior-melhor", dando pulinhos de alegria.

Fato é que o bafafá da vez teve sua gênese há alguns dias, em plena Igreja de Nápoles, na Itália, ainda que só agora o evento tenha vindo a público: um milagre com data marcada para acontecer acabou não chegando às vias de fato. 

Trata-se da tão esperada liquefação do sangre do mártir São Januário, evento que, ao menos em tese, vem se repetindo desde 1389: "Um milagre que, segundo a Igreja Católica, tradicionalmente acontece três vezes por ano na catedral de Nápoles, na Itália, não se realizou no último dia 16," relata notícia publicada hoje no jornal Folha de S. PauloMas passemos logo às consequências do suposto "não milagre": "O que seria o sangue de São Januário, um mártir que viveu por volta do ano 305, não se liquefez, acontecimento que, na tradição católica, seria um prenúncio de grandes tragédias."

Sinceramente? O surpreendente, a meu ver, não é propriamente a ausência do milagre, mas dois fatos subsidiários que ficaram em segundo plano na cobertura da imprensa. O primeiro diz respeito ao fato de que o tal do milagre tenha um cronograma bastante preciso para acontecer. Aliás, querendo, é só anotar: "o sangue, mantido em uma ampola de vidro, se liquefaz tradicionalmente nos dias 19 de setembro, no sábado antes do primeiro domingo de maio e em 16 de dezembro." 

O segundo fato digno de menção é a relação causal estabelecida entre a ausência do milagre e o acontecimento de algumas tragédias ocasionais. De acordo com os moradores de Nápoles, "o mesmo aconteceu em 1980, quando um terremoto atingiu o sul da Itália; em 1973, quando houve uma epidemia de cólera em Nápoles; em 1943, quando a Itália foi ocupada pelos nazistas; em 1940, quanto a Itália entrou na Segunda Guerra Mundial; e em 1939, quando a guerra começou." Em outros termos, e de maneira indireta, a presença ou a ausência do milagre acaba fazendo as vezes de oráculo: sem milagre, tragédia à vista; com milagre, vida que segue.  

Não se sabe ao certo se a correlação estatística entre essas duas ordens de evento já foi confirmada, mas, de qualquer forma, a amostra de tragédias identificadas já demonstra um ligeiro viés napolitano: a cidade sede da relíquia de São Januário figura campeã entre os locais mais afetados pelas tragédias, seguida pelo resto da Itália. 

Pelo sim, pelo não, e em tempos de crise e de salários atrasados pelo nosso Brasil afora, cabe até perguntar: um 13º salário em dia também vale como milagre? Seja lá qual for a resposta, a Igreja Católica parece não estar querendo render muito o assunto: "não devemos pensar em tragédias e calamidades. Somos homens de fé e devemos continuar rezando," sugere o abade de Nápoles, Vincenzo de Gregorio. 

Eu, se fosse abadessa, iria um pouco além: em 2017, seja você mesmo o seu próprio milagre e não espere ele cair do céu. Mas como não sou, fico por aqui, ouvindo as trombetas ressoarem no horizonte. 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Mini-ostentação

Olha, nem precisa ser pedagoga para avaliar como sofrível a lista dos presentes que as crianças ricas ganham de Natal. Compilada pelo jornal britânico Daily Telegraph e oferecida ao público brasileiro pelo O Globo online, a lista vem recheada de imagens sedutoras e seus respectivos preços, prometendo encher os olhos de quem lê - seja lá de admiração, consternação ou dó.

No entanto, uma análise sensata, levando-se em consideração a adequação ao usuário como primeiro critério, desclassificaria a maior parte da seis opções de presentes descritas na matéria. Por exemplo, a réplica em lego da espaçonave Millenium Falcon jamais chegará às mãos da criança se o pai ou a mãe for um aficcionado do filme Stars Wars (ou Guerra nas Estrelas, se preferirem). Agora, pasmem com o precinho do brinquedo, considerado "o kit de lego mais caro que existe": ele está avaliado, senhoras e senhores, em R$ 34.000. O mesmo raciocínio vale para a pista de carrinhos de 4 metros de extensão da marca Scalextric, avaliada em R$4.900: complexa demais para uma criança montar sozinha, é bem provável que o primeiro adulto por perto se aproprie dela - obviamente, sob o pretexto de monta-la para a criança.

Outro critério (des)classificatório de algumas das opções fornecidas pela lista é o seu gosto estético extremamente duvidoso. A tal casinha de árvore com dois andares e 16 janelas da marca Kyoto Maxi Playhouse lembra muito o foguetinho do programa Domingo no Parque, do Sílvio Santos. Ou seja, além de custar os olhos da cara - algo em torno de R$19.000 - é feia de doer, ou seja, muito menos apresentável que sua tradicional correlata em madeira. Já a girafa de pelúcia de 2,5 metros da marca Steiff, avaliada em R$13.000, promete ser um desafio para toda a família: quem consegui montar nela paga a conta!

Por fim, vem a questão da relação custo-benefício. A máquina de pinball do Pac Man, no valor de R$15.000, é só ostentação. Por um terço do preço anunciado, é possível adquirir um Pinball Digital em máquina de fliperama de verdade (preços disponíveis no Mercado Livre). E este último tem ainda a vantagem de ser alimentado por moedinhas - um pequeno luxo que deveria, ao menos em princípio, pacificar bastante a alma de quem gosta de ostentar.  

Sobrou apenas o mini-Bentley, um carrinho invocado, "inspirado em modelo da década de 1920", destinado a substituir o tradicional carrinho de rolimã. É bem bonitinho, é verdade, mas é também ordinário: por R$20.000, o usuário jamais experimentará as mesmas emoções aerodinâmicas vividas em cada curva fechada em declive, nem os dedos esfolados no asfalto e muito menos os capotamentos fantásticos que só um carrinho de rolimã original pode ocasionar.  

Por essas e por outras, minha suspeita é que os seis presentes bilionários devem responder mais às necessidades psíquicas dos pais - auto-afirmação, carência, culpa - do que propriamente ao usufruto pelos filhos.

Ou não... como diria Caetano Veloso.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Exofuga

Os acontecimentos recentes no Brasil aumentaram exponencialmente meu interesse em saber mais sobre a possibilidade de vida humana no exoplaneta HAT-P-7b. Contudo, a alegria e a esperança de migrar para o "gigante gasoso," localizado a mais de mil anos luz de distância da Terra, durou pouco.

Segundo artigo publicado na revista Nature Astronomy, o HAT-P-7B, exoplaneta 16 vezes maior que a Terra, acaba de ter seus sistema climático desvendado com o auxílio de imagens captadas pelo telescópio Kepler ao longo de quatro anos. Mudanças perceptíveis na localização do ponto mais brilhante do planeta levaram os pesquisadores da equipe de David Armstrong, da Universidade de Warwick (Reino Unido), a concluírem que tais mudanças se devem à presença de ventos de velocidade variável ao redor do exoplaneta. 

"Os ventos mudam de velocidade dramaticamente, levando a formação de enormes nuvens, que se dissipam em seguida," que se movem do lado noturno para o lado diurno do planeta. Com isso, o exoplaneta se torna alvo de “tempestades catastróficas”, "com nuvens formadas por corindo, o mineral que forma rubis e safiras."

Portanto, insatisfeitos de plantão, que um dia sonharam protagonizar uma paródia da canção "Como nossos pais," eternizada pela voz de Elis Regina  - aquela do "cabelo ao vento, gente jovem reunida" - terão de abdicar do sonho. "Em parte pelo violento sistema climático, o HAT-P-7b nunca poderá ser habitado. Além disso, as temperaturas são insuportáveis para a vida como conhecemos. Uma face do planeta estão sempre virada para a estrela, como a Lua em relação à Terra. Neste lado sempre iluminado as temperaturas chegam a incríveis 2,6 mil graus Celsius". 

Por falta de condições materiais favoráveis para assegurar minha própria existência, decidi então prorrogar por mais algum tempo a minha busca pelo exoplaneta ideal. Rubis e safiras terão de esperar mais um pouco: afinal, não há crise institucional que valha o esforço de tomar 2,6 mil graus Celsius na moleira. 

Fora isso, é chegado o tempo de reivindicar melhores condições de vida em planetas distantes, fora do nosso sistema solar e do alcance dos efeitos nefastos da PEC 55. É para lá que eu hei de partir em breve.


segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Suspensos

Esse informe publicitário travestido de notícia conseguiu me lubibriar. Por um breve instante, troquei meu sonho de nadar numa piscina de 50m pela metade do sonho: uma piscina inaugurada este ano em resort na Itália, com vista para as montanhas Dolomitas. "A estrutura de 25 metros de comprimento se projeta para fora do terraço do hotel, que tem 20 metros de altura", diz a notícia. 

Mas isto não é tudo: "No fundo da piscina, há uma janela de vidro, pela qual o hóspede pode enxergar o que se passa embaixo dele enquanto mergulha. À frente, é possível desfrutar de uma vista deslumbrante: as Dolomitas, uma cadeia de montanha considerada Patrimônio Mundial pela Unesco."

O delírio, contudo, foi realmente breve - tempo de ler o preço nada amigável das diárias, que varia entre € 127 (R$ 468) e € 225 (R$ 830). 

A piscina suspensa terá, portanto, e tão somente aos meus olhos, o mesmo efeito dos Jardins Suspensos da Babilônia: uma das Sete Maravilhas do Mundo alçada à condição de mito, por falta de evidências concretas na sua existência. 

Porque numa hora dessas, meus amigos, é a experiência direta que tem que contar: porque metade de mim quer nadar naquela piscina suspensa... e a outra metade também.

P.S.= Rest In Peace, Ferreira Gullar. Você não merecia este trocadilho infame.