UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: março 2015

terça-feira, 31 de março de 2015

Jornalismo daltônico

Bacana! Hoje o jornal Folha de S. Paulo online deu uma aula hoje sobre como misturar espaço publicitário com jornalismo pouco informativo.

O pior é que o tema era interessante e tinha tudo para dar certo. A notícia abordava a experiência de "um grupo de daltônicos [que] conseguiu enxergar todas as cores pela primeira vez com a ajuda de um óculos especial, criado por uma empresa de tintas" (http://f5.folha.uol.com.br/voceviu/2015/03/1609220-daltonicos-enxergam-todas-as-cores-pela-primeira-vez-com-oculos-especial-assista.shtml).  

O leitor então há de se perguntar: "o que tem de errado com a notícia?" O problema reside na propagação das benesses de um produto, sem que se tenha o cuidado de questioná-la ou colocá-la sob perspectiva. A notícia é taxativa: "as lentes são capazes de separar os tons e derivações do vermelho e do verde, que geralmente são percebidos como iguais pelos daltônicos, e, assim, corrigir a visão deficiente".

"E o que de mal há nisso?", retruca, inquieto, o leitor deste blog (e possível leitor da notícia também).

O problema reside em repercutir tão somente o viés das empresas envolvidas: "A companhia americana Valspar, gigante do setor, desenvolveu o acessório em parceria com a EnChroma, que pesquisa a percepção das cores." Trocando em miúdos, a notícia banca a versão apresentada apenas pelos desenvolvedores do utensílio, cujo principal interesse parece ser o de promover o lançamento de "um minidocumentário produzido pela empresa", registrando "a reação de daltônicos ao enxergarem um espectro maior de cores pela primeira vez".

"E quem pode provar que as empresas estão erradas?", prossegue o leitor.

Bom, basta ler o primeiro comentário de um leitor que se identifica como Legionário. Diz ele: "A coisa não se passa como aparece na reportagem. Ninguém põe um óculos especial e instantaneamente passa a ver todas as cores. O próprio fabricante do óculos alerta que a melhora é lenta e gradual e que o óculos só funciona em locais ensolarados. Não funciona dentro de automóveis e edificações. Eu mesmo tenho um desses e sei como as coisas são. Antes de comprar esses óculos, informe-se melhor".

Alternativas? Várias! A primeira precaução seria buscar, logo de cara, um usuário concreto dos óculos em questão. Além disso, nunca é demais ouvir a opinião de especialistas -  oftalmologistas, pesquisadores, fabricantes de lentes - que não tenham nenhum comprometimento ou benefício direto com o desenvolvimento do produto apregoado. Resumindo: a Folha poderia ter feito muito mais do que simplesmente transcrever o conteúdo informado pelo press release do fabricante dos óculos em questão e submetido o artefato a um escrutínio mais rigoroso.

Fosse aquele espaço jornalístico um pouco mais sério, ele teria usado mais do que uma simples fonte para a notícia. Afinal, antes isso do que passar o "carão" de ter sido desmentido por um leitor daltônico, usuário do óculos em questão. Faltou, no final das contas, vontade para traçar uma fronteira nítida entre jornalismo e publicidade, lembrando que esta última apresenta, de forma descarada mas nem por isso menos legítima, a versão do anunciante. Uma diferença protocolar que não deveria jamais ser esquecida!

quinta-feira, 26 de março de 2015

Jaçanã

Se você já ouviu Adoniram Barbosa, sabe que quem morava em Jaçanã não podia se dar ao luxo de perder o trem das onze.

Pois, a situação que ilustrava do clássico do samba está longe de ser superada. O chamado movimento pendular define o ritmo de vida de 7,4 milhões pessoas que "se deslocam da cidade onde moram para trabalhar ou estudar em municípios vizinhos" (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/03/1607734-mais-de-metade-dos-brasileiros-vive-em-nucleos-de-cidades-relacionadas.shtml).

O dado foi levantado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base nos dados do censo de 2010. O mais interessante, contudo, é notar que, apesar das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo concentrarem os mais índices de deslocamento com as cidades vizinhas, este tipo de interação não acontece necessariamente entre cidades de grande porte. "A maioria (63,6%) dos arranjos é de populações pequenas, com menos de 100 mil habitantes".

Alguns dados curiosos divulgados pelo  IBGE: o deslocamento entre cidades que envolve o maior número de pessoas no país é o que liga Guarulhos a São Paulo (146 mil pessoas), seguido de São Gonçalo e Niteroi (120 mil). "
Os pesquisadores explicaram que, para ser considerado alguém que vive nesse eixo, é preciso transitar com alguma regularidade entre os dois conglomerados urbanos", relata a notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo.

Cidades médias e pequenas com circulação intensa de pessoas. Claro, a circulação delas de um lado para o outro demanda transporte público e malha viária de qualidade, o que nem de longe parece ser o caso. Se a coisa continuar neste pé, daqui a pouco, para chegar ao trabalho ou a escola, só mesmo sequestrando o trem fantasma do parque de diversões. E há ficar saudade daquele tempo que em saía, de fato, um trem para Jaçanã às 11h.

terça-feira, 24 de março de 2015

Medos e próteses

Dizem que as mais variadas motivações que movem as pessoas pela vida afora podem ser resumidas em dois sentimentos: amor e medo.

Se isso for verdade, então está fácil de matar a charada da Angelina Jolie. A atriz e cineasta de 39 anos, que já havia removido as duas mamas em 2013,  anunciou hoje "a remoção de seus ovários e das tubas uterinas como uma maneira de prevenir o câncer" (http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2015/03/1607237-angelina-jolie-retira-ovarios-e-trompas-para-evitar-cancer.shtml).

A razão para tanto medo é um "defeito de fábrica", isto é, "uma cópia defeituosa do BRCA1, um dos genes responsáveis por suprimir o aparecimento de tumores no tecido mamário e também em outros órgãos, como ovários e intestino." A notícia publicada hoje no jornal Folha de S. Paulo ainda explica que, após a retirada dos tecidos mamários em 2013 foram realizados implantes no local.

Resta agora saber que espécie de prótese Jolie espera colocar no local do útero, visto que a possibilidade de desenvolver menopausa precoce também é grande. Isto signficaria "maior risco de osteoporose, redução da libido, da lubrificação vaginal e da elasticidade da pele, diz Jacques Tabacof, do Centro Paulista de Oncologia".

Se, em determinadas situações, o medo paralisa, em outras ele também parece mover montanhas e extrair órgãos. Se a auto-mutilação vai resolver, só o tempo dirá. Fato é que se a coisa caminhar nesse rumo, o próximo passo será... lobotomia.

A insustentável criatividade do morrer

Diante do óbvio, o insustentável.

Laudo médico oficial sobre causa de morte da poeta e ativista Shaimaa el-Sabbagh, falecida em 24 de janeiro deste ano no Egito, durante manifestação em homenagem ao aniversário da eclosão da Primavera Árabe,
indica ausência de camada adiposa. Foi o que alegaram as autoridades egípcias no último sábado, dia 21 de março:  "o porta-voz do serviço médico legal egípcio declarou em entrevista na televisão que Sabbagh, 31, não teria morrido se não fosse tão magra" (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/03/1606807-ativista-morreu-em-protesto-por-ser-magra-demais-dizem-legistas-egipcios.shtml).

De acordo com o porta-voz egípcio Hisham Abdel Hamid, a ativista "era magra demais. Não tinha qualquer porcentagem de gordura. Por isso, os chumbinhos penetraram com muita facilidade, e quatro ou cinco de todos os chumbinhos que penetraram seu corpo (...) penetraram seu coração e pulmões, e foram eles que causaram sua morte."

Além de esfarrapada, a desculpa não deixa de surpreender pelo seu elevado teor de criatividade e cinismo. Aliás, criativa em termos: o recurso a uma dada prática de retórica que consiste em inverter a responsabilidade pelo dano e imputá-lo à vítima é mais velho do que andar para a frente. Algo equivalente acontece no adágio "mulheres de minissaia merecem ser estupradas" e outros horrores do gênero.

Agora, se o leitor está achando que o problema é árabe e ninguém tem nada a ver com isso, aqui vai outra notícia: a prática da polícia brasileira de registrar a morte de indivíduos resultante do confronto em áreas desfavorecidas como "autos de resistência" (morte resultante de resistência à prisão) não fica muito distante disso (http://oglobo.globo.com/brasil/ausencia-de-controle-dos-autos-de-resistencia-expoe-precariedade-de-rede-de-dados-10686767). Há falta de registros confiáveis, subnotificação de mortes resultante e fraude na atestação da causa mortis (leia-se "execução sumária" sem existência de qualquer confronto com a polícia).

Uns magros demais, outros negros demais, outros pobres e desprestigiados demais. Pouco importa. A criatividade não encontra limites quando se trata de esconder o óbvio e legitimar o insustentável.

quinta-feira, 19 de março de 2015

As rapidinhas do equinócio

Ei você, que está cambaleando de sono, mas resiste bravamente a correr para a sua cama e dar o "expediente" por encerrado. A palavra de ordem agora é "cama", sem restrições. Afinal, amanhã é dia grandes eventos e você necessitará estar em forma para acompanhá-los.

De acordo com a notícia publicada no Jornal Hoje em Dia online, amanhã é dia de eclipse solar total (visível apenas na América do Sorte), mudança de estação (passamos do verão ao outono) e superlua, evento bastante comemorado que dá uma sensação de proximidade aguçada com a lua (http://www.hojeemdia.com.br/noticias/mundo/sexta-feira-tera-eclipse-solar-total-equinocio-e-superlua-1.306126).

Portanto, nada de tempo gasto em vão neste blog. A consigna é clara: vamos dormir cedo, pois a conjunção astral  recomenda a preservação de forças para o que vem para frente. Por mera obediência, vou acatar sem contestar (no fundo, achando até bom de não precisar perder todas as minhas milhas acumudadas).

Fiquemos assim então: com tantos eventos, tantas serão também as surpresas.

E meu boa noite para quem fica.

Música quadrada

Seriam os discos quadrados a mais nova classe de "genéricos" da indústria fonográfica?

Em tempos de crise vividos por mídias digitais, tais como os CDs, acusadas a torto e a direito de obsolescência, uma dupla de amigos de São Paulo faz "pequenas tiragens de LPs em três formatos diferentes", relata notícia publicada na Folha de S. Paulo de hoje  (http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2015/03/1602354-dupla-grava-vinis-em-maquinas-raras-e-produz-discos-quadrados-em-sp.shtml).

Com o auxílio de uma máquina da marca Neumann, fabricada na década de 1950, Arthur Joly e Bruno Borges movimentam a empresa Vinyl Lab que, além de reproduzir gravações com baixa fidelidade  - pasmem! - é capaz também de fabricar LPs quadrados. A Vinyl Lab oferece um modelito excêntrico, mas atraente: "o disco quadrado custa R$ 20 a unidade e também faz papel de quadro, com desenhos que podem ser gravados em sua superfície." 

A nova classe de genéricos dos antigos LPs de vinil de têm, portanto, uma característica interessante: como todo genérico de medicamentos, serve para o mesmo fim que o seu original; mas, ao contrário deste, costuma ser um tanto mais caro do que o seu original redondo. 

Bem, não deveria ser, visto nele não estão embutidos gastos com publicidade. De qualquer forma, o consumo de música de vanguarda em formato quadrado não deve trazer danos à saúde, nem tampouco prejudicar a carreira dos músicos mais vanguardistas que optarem pelo formato quadrado. 

E há quem já faça planos futuros com o genérico do nosso antigo LP. De acordo com o músico Curumin, cujo depoimento figura na notícia supracitada, o som em vinil "éum som mais sujo", razão pela qual ele agora pensa "em usar esse tipo de gravação para produzir som com uma tonalidade diferente." 

Minha suspeita, no final das contas, é a de que o disco quadrado há de se tornar muito em breve uma relíquia de valor inestimável, principalmente para quem gosta de inventar moda. Ou então, para quem não inventa moda alguma e prefere apenas surfar na onda dos saudosistas. Tanto faz como tanto fez: como bom genérico, o que importa é o seu "princípio ativo", isto é, a música de boa qualidade.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Ventilação doméstica

Na semana em que comemoramos o Dia Internacional da Mulher, eis que sopram algumas lufadas de ar fresco diretamente da capital paulista.

Sim, meus caros, ao que parece, a cidade de São Paulo conhecerá dias mais livres, pelo menos no que diz respeito à circulação de pedestres e veículos em ruas fechadas. Tudo em decorrência de sábia decisão da prefeitura de São Paulo, que convoca moradores a removerem obstáculos à passagem de pessoas e veículos.

"Segundo a Secretaria de Coordenação de Subprefeituras, a lei municipal que permitia o fechamento de vilas, ruas sem saída e vias com características de 'rua sem saída' foi julgada inconstitucionais (sic!) pelo Tribunal de Justiça de São Paulo", relata notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/03/1602065-prefeitura-manda-moradores-tirarem-portoes-em-ruas-fechadas-de-sp.shtml).

Em termos práticos, a inconstitucionalidade da lei faz com que novos bloqueios sejam proibidos e que os antigos estão sejam revistos. Ou seja, menos feudos e mais circulação em uma cidade que conhece muito bem a força do capital privado.

Mas alguém há de argumentar: e a violência, como fica? Deve o morador de vilas e ruas fechadas ficar à mercê dos mal-intencionados de plantão?

Ora, se nos fiarmos nas estatísticas sobre a violência contra a mulher, temos boas razões para querer retirar obstáculos à circulação de pessoas. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), 40% das mulheres brasileiras já sofrera violência doméstica em algum momento de sua vida (http://www.ovalentenaoeviolento.org.br/artigo/73/Dados-sobre-violencia-contra-mulheres-e-meninas).

Outros dados publicados em 2013 pelo Datasenado reiteram a ideia de que a maior violência contra a mulher acontece dentro de casa - e não na rua. "Dentre as mulheres que já sofreram violência, 65% foram agredidas por seu próprio parceiro de relacionamento, ou seja, por marido, companheiro ou namorado" (http://www.senado.gov.br/senado/datasenado/pdf/datasenado/DataSenado-Pesquisa-Violencia_Domestica_contra_a_Mulher_2013.pdf).

Ou seja, a maior parte das agressões contra mulheres acontece em ambiente doméstico e por homens que livre acesso à intimidade dessas mulheres. Deste ponto de vista, a eliminação de barreiras à circulação só vem a colaborar para que a circulação das vítimas de violência doméstica seja livre, inclusive, para fugir das agressões e procurar ajuda.

Resumo da ópera: quanto menos barreiras, melhor!

quinta-feira, 12 de março de 2015

Publicidade amorosa

Para aqueles que julgavam que o "correio elegante" distribuído nas festas juninas tinha sido morto e enterrado na tumba do esquecimento, aqui vão duas histórias de novas e velhas mídias que se rivalizam na onda dos anúncios amorosos.

Wina Lia é proprietária de uma casa que acaba de ser colocada à venda na Ilha de Java (Indonésia). A parte picante e pitoresca da história desta viúva de 40 anos é que quem comprar a sua casa pode adquiri-la como esposa, juntamente com o imóvel (http://oglobo.globo.com/economia/compre-uma-casa-case-com-antiga-dona-15560976).

Segundo notícia publicada no jornal O Globo online, o texto do anúncio reza que "quando você comprar esta casa, poderá pedir a proprietária em casamento", mas só vale “para compradores sérios e não é negociável”. O anúncio de Wina foi elaborado por um corretor de imóveis, amigo da anunciante, e publicado em algum lugar da Internet.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, mas utilizando mídias menos interativas, Heron Guarezi partiu para o outdoor com foto e telefone para atrair a sua "alma gêmea", a saber: "mulheres entre 18 a 35 anos, interessadas em um relacionamento sério" (leia-se "casar") (http://oglobo.globo.com/brasil/agricultor-de-santa-catarina-faz-anuncio-em-outdoor-em-busca-de-namorada-15562557).

Para elaborar seu anúncio, o operador de máquinas agrícolas, que tem 30 anos e mora em Tubarão (Santa Catarina), contou com a ajuda de uma empresa de comunicação visual.

Métodos distintos, retornos diferentes. Wina afirmou à Agência AFP que só recebeu até agora a visita de um "provável comprador" e candidato a marido. Já Herson diz ter recebido 100 telefonemas, mas ainda não chegou a conhecer alguma pretendente pessoalmente.

Não estivesse Wina acima da faixa etária pretendida por Herson, morando em outro país e com um padrão de vida provavelmente superior a deste último (a casa de Wina está sendo vendida US$ 75 mil), a coisa ente eles já estaria a meio caminho andado: ao menos, ambos já teriam muito o que conversar sobre os efeitos nefastos da superexposição da vida íntima.

Para além dos esforços publicitários, no entanto, o importante é menos a quantidade de retorno de possíveis pretendentes do que a exatidão da escolha do/da candidato. Neste sentido, não há modalidade de anúncio que faça este tipo de milagre.


segunda-feira, 9 de março de 2015

Paleta científica

Comentário breve e despretensioso, para não atrapalhar o sono de ninguém logo no início da semana.

Se nos fiarmos pela notícia publicada hoje na Folha de S. Paulo, a grande dúvida existencial que paira sobre as mentes atormentadas, neste momento, parece ser o destino da paleta mexicana: "Depois de as paletas mexicanas terem virado febre em 2014, há quem aposte que a moda dos picolés de 120 gramas vai começar a derreter no inverno deste ano", alerta a notícia (http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/03/1599994-depois-da-febre-paleteria-mexicana-passa-por-teste-de-sobrevivencia.shtml).

Como o tema foi foco de controvérsia, o jornalista da Folha não deixou por menos: coletou o depoimento de nada mais nada menos do que quatro informantes diferentes para discutir o suposto do destino da paleta mexicana. Tamanho empenho na apuração - um tanto contrastante com o tamanho do picolezinho - me faz pensar na relevância do destino da paleta para a Humanidade. 

Pois, neste mundão grande sem porteira, o que me preocupa, de fato, é o destino jornalístico da nossa cobertura de ciência. As matérias de ciências, coitadinhas, não têm metade do prestígio da notícia sobre o triste destino das paletas mexicanas. Como elas já vêm, em sua grande maioria, mastigadas pelas agências internacionais de notícias (Reuters, AFP, BBC, etc), acabam demandando pouco ou quase nenhum esforço de apuração. É como se o texto da agência fosse replicado nos diversos jornais, sem grandes margens para dúvidas ou apuração local.

Bem, se não há esforço de buscar informações diretamente junto às fontes, o jeito é nivelar pelo conteúdo oferecido pela agência. Sobra espaço para a opinião de cientistas e pesquisadores nas matérias de ciência? Quando muito, devidamente filtrados pelo texto da agência. Busca-se informantes locais? Quando muito, para comentar os achados de pesquisa dos países do Hemisfério Norte. E as citações diretas, entre aspas, ainda existem? Estão todas ameaçadas de extinção, juntamente com as controvérsias e os temas de relevância, com impacto direto na vida coletiva.

Aliás, se a coisa continuar desse jeito e o jornalismo de ciência acabar morrendo de inanição, ninguém vai ligar! O importante é sobrar paleta mexicana até o inverno de 2015. Isso, sim, é tema capaz de causar comoções intestinas.   

 

sexta-feira, 6 de março de 2015

Neuro-atrevimento

Esta é para ir dormir pensando no quanto essas mídias digitais têm facilitado o acesso de leigos desavisados ao campo da fotografia.

Ben Savard, um "produtor de mídia digital", estava bastante entregue à sua tarefa de fotografar polvos usados em experimentos por alunos de neurociência do Middlebury College, quando foi surpreendido (http://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/produtor-de-midia-fotografa-polvo-com-gopro-mas-cefalopode-rouba-lhe-camera-vira-mesa-15508112).

Savard teria explicado ao site “Mother Nature Network” que, após configurar seu modelito de GoPro para uma sequência de fotos em timelapse, eis que " um dos cefalópodes mais atrevidos pegou a câmera e virou-a para mim tirando algumas fotos." Como se não bastasse, o polvo fotógrafo tirou onda de fotógrafo: "Naqueles poucos segundos, o audacioso polvo disparou uma foto surpreendentemente boa de Savard."

Palmas para o polvo que, com tantos braços, ensinou um deles a fotografar. Mas mérito mesmo pode ser o dos alunos de neurociências, que têm usado os polvos para "observar se a espécie pode abrir caixas de comida mais rapidamente depois de ver outros polvos fazendo o mesmo." Tudo indica que o atrevimento do polvo acabou forjando um bom prognóstico de carreira para esses futuros pesquisadores: afinal, se funcionou com fotografia, por que não com latas de comida?

quarta-feira, 4 de março de 2015

Serpentário urbano

Autor do “Atlas das serpentes do Brasil”, o biólogo Cristiano Nogueira lança um alerta, cujos desdobramentos ultrapassam - e muito! - o campo da Zoologia.

Não sem razão, zoólogos liderados por Nogueira se preocupam sobremaneira com espécies de cobras ameaçadas de extinção, reivindicando condições adequadas para a preservação das espécies. Porém, sociólogos, antropólogos urbanos e outros hermeneutas das coletividades humanas também deveriam perder algumas noites de sono com o prognóstico que se segue.

Em notícia publicada hoje no jornal O Globo online, Nogueira, que também lidera uma equipe do Museu de Zoologia da USP, esboça um prognóstico dramático para os ofídios no Brasil: "as cobras perderam 80% de seu território nos últimos 30 anos por conta do avanço da urbanização e da agropecuária", alerta o pesquisador (http://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/cobras-perdem-habitat-se-tornam-mais-urbanas-15485896).

Uma consequência prática disso é que, "em dez anos, algumas delas podem até ser extintas. Outras se tornaram mais urbanas". Mas, como bem lembra o pesquisador, "o contato entre as serpentes e a população traz outro problema: a perseguição humana". Este fenômeno, claro, teria outro enfoque se os cientistas sociais passassem a interpretar todas essas mudanças recentes na rotina das populações das grandes cidades, notadamente, o impacto das cobras em ambientes de trabalho

Pois sabe aqueles problemas no trabalho por conta de conversa fiada de terceiros? As malfadadas crises de relacionamento em  grupos antes mantidos por afinidade? Ou aquelas puxadas de tapete em relações comerciais, profissionais e afins? Pois é chegada a hora de levar os zoólogos à sério: o seu local de trabalho deve ter se tornado mais um serpentário urbano.

Fico por aqui, concluindo este sombrio prognóstico com um mote altamente preservacionista: proteja-se das serpentes, protegendo o seu habitat natural.

P.S. = Na dúvida, leve soro antiofídico no bolso. Mesmo se, para algumas dessas, não há soro antiofidífico que chegue.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Breve, mas intenso

Um breve surto de otimismo para abrir as comportas para as águas de março passarem.

Após prolongada e tenebrosa predominância de notícias sobre a crise hídrica no Brasil, eis que um novo assunto começa a tomar conta do noticiário local: os inconvenientes trazidos pelas tempestades.

A edição do jornal O Globo online de hoje, por exemplo, traz receituário para evitar riscos e danos causados por tempestades (http://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/os-cuidados-para-reduzir-riscos-saude-danos-aparelhos-durante-tempestades-15458083). Em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana de Recife, banhistas se assustam com tromba d'água (http://f5.folha.uol.com.br/voceviu/2015/03/1596946-confundida-com-tornado-tromba-dagua-assusta-banhistas-em-praia-do-recife-assista.shtml).

Mas nem só de inconvenientes vivem os céus deste país. Mais adiante, em outro jornal online, notícia destaca o mês de fevereiro como sendo o mais chuvoso dos últimos 11 anos na cidade de Belo Horizonte (http://www.hojeemdia.com.br/horizontes/volume-de-chuva-registrado-para-fevereiro-e-o-maior-dos-ultimos-11-anos-em-bh-1.302356). Fevereiro foi também propício para o reservatório da Cantareira, que conheceu o melhor registro de chuvas neste mês desde o ano de 1995 (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/03/1596937-sistema-cantareira-registra-o-mes-de-fevereiro-mais-chuvoso-desde-1995.shtml).

Os pessimistas hão de argumentar que essas notícias são escassas gotas de bem-aventurança em um oceano de trevas hídricas. Argumentarei que eles não deixam de ter um pouco de razão, exceto por um aspecto: vacinas são também são tomadas a conta-gotas.

Otimismo renovado, que venham as águas de março fechar mais verão.