UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: maio 2016

terça-feira, 31 de maio de 2016

Mistérios do fundo mar

Viagem à irrealidade cotidiana.

O título do célebre livro de Umberto Ecco - uma coletânea de textos do autor - é um convite a viajar na irrealidade do nosso dia-a-dia. Como?

Comecem por esse hotel em Dubai, o Atlantis - The Palm, que oferece vista exclusiva para o mar. Um passo a mais do que os concorrentes em termo de "exclusividade", as suítes Neptune e Poseidon "ficam no fundo do aquário Ambassador Lagoon, que integra o complexo aquático Atlantis". Nada mais irreal do que o cenário escolhido: "Com 65 mil animais marinhos e decoração que remete às ruínas da cidade perdida de Atlântida, o aquário é o maior a céu aberto do Oriente Médio".

É fato que os arquitetos responsáveis pelo empreendimento souberam dar asas à imaginação. "Com 165 metros quadrados, cada uma das suítes tem dois quartos, banheiro (com direito a banheira com vista para os peixes), uma sala de jantar e serviço de mordomo 24 horas por dia". O precinho das suítes também não se encaixa na realidade da maioria dos mortais: "As diárias custam a partir 20 mil dirhams, o equivalente a R$ 19.480". Com alguma sorte e algum tesouro achado no fundo do mar, quem sabe?

Mas se vocês quiserem algo ainda mais surreal, basta ler o noticiário nacional e tomar conhecimento do fato de que "o ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, Fabiano Silveira, pediu demissão do governo" interino agora à noite. Acusado de tentar controlar o avanço da Operação Lava-jato em áudio gravado pelo executivo Sérgio Machado, Silveira decidiu renunciar em nome de algo que tão palpável quanto a Atlântida: sua "trajetória de integridade no serviço público."

As más línguas, contudo, apostam em outra versão para a renúncia. Ao abrir mão do cargo, acredita-se que o Ministro da Transparência tenha tentado mimetizar o ex-presindete Luís Inácio Lula da Silva, que, apesar de também ter tido um áudio controverso divulgado publicamente, conseguiu manter alguma popularidade, apesar de todos os pesares. 

Quanto a nós, pobres mortais naufragados no fundo desse mar de denúncias, só nos tem restado assistir a esse pequeno show de horrores diário: testemunhar os tubarões da política negociarem cargos, influência e outros tesouros nacionais. 

Bem-vindos, pois, à irrealidade da política cotidiana. E quem paga a diária nesse parque aquático somos nós, contribuintes.

 

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Escritor de influenza

Ele, mais uma vez!

O astronauta mais pop da transição para a Era de Aquário, o norte-americano Scott Kelly, volta a ser alvo da atenção da imprensa mundial. Após passar 340 dias na Estação Espacial Internacional, "Kelly fez sua primeira grande apresentação aos empregados da agência espacial americana nesta quarta-feira".

Depois de ter crescido cerca de 4 cm durante o período em que esteve nos espaço, as notícias, desta vez, são menos festivas: em sua apresentação, o astronauta afirmou que "sofre de dores nos pés, rigidez nas pernas e fadiga mesmo após três meses na Terra". Como se isso não bastasse, "Kelly disse que sofre com ardor na pele e sintomas similares aos da influenza."

O mais interessante nessa história é que o pop star Kelly esteve o tempo todo em companhia de dois outros astronautas russos na Espaçonave SoyuzMikhail Kornienko e Sergey Volkov, sobre os quais sabemos muito pouco. Problema da Rússia: quem mandou ela não contratar os mesmos assessores de imprensa da Nasa?

Ironias à parte, ou melhor, usando um pouco mais dela, é com sincera alegria que acolhemos a notícia de que Kelly está escrevendo um livro sobre sua experiência no espaço. Se continuar como está, vai ser um escritor de muita influenza no mundo!

P.S. = Sorte de Kelly não ter pousado no Brasil. A adaptação seria muito mais difícil e, certamente, incrivelmente mais dolorosa.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Serendipidade

Os otimistas sempre defenderam o seguinte adágio: "aquilo que você procura também está procurando por você". E talvez eles tenham mesmo razão: o encontro narrado hoje pelo jornal O Globo online é certamente um dos mais afortunados na história deste asteroide pequeno que todos chamam de Terra e constitui motivo de celebração para qualquer otimista de plantão.

Então: o motivo da celebração é "um fóssil encontrado por colecionador de achados arqueológicos na cidade de Winifred, no estado americano de Montana", o qual foi apelidado de Judith (em alusão ao rio mais próximo, de mesmo nome). Bem, se fosse apenas isso, vá lá. Mas acontece que o fortuito encontro entre o físico aposentado Bill Shipp e seu objeto de desejo foi entremeado de pequenos golpes de sorte subsidiários. 

Em primeiro lugar,  é de bom alvitre avisar que o colecionador literalmente tropeçou naquilo que mais tarde veio a se saber a perna do Spiclypeus shipporum, nome científico atribuído à sua descoberta. Como se isso não bastasse, o físico ainda teve a prerrogativa de estar na melhor das companhias no momento em questão: "Shipp estava na compania de um paleontólogo, contratado para dar a ele uma aula sobre caça a fósseis no rancho que o físico acabara de comprar".

Fora isso, o encontrou acabou resultando na descoberta de uma espécie de dinossauro até então desconhecida, próxima do conhecido triceratops - ambos possuíam chifres na parte posterior da cabeça, alimentavam-se de plantas e "mediam algo em torno de cinco metros de comprimento, pesando cerca de quatro toneladas". 

Por fim, Shipp teve ainda uma última ajudinha do universo: Judith, a dinossaura, era manca. "As análises dos ossos da perna mostram que o animal padecia de uma infecção que o deixava mancando, fazendo dele uma presa fácil para dinossauros maiores e carnívoros". Em outros termos, Judith poderia ter morrido em qualquer outro lugar, mas já escolheu, com 76 milhões de anos de antecendência, sucumbir ali mesmo, no quintal do físico.

Em entrevista à agência de notícias Associated Press, Shipp resume bem o caráter totalmente acidental da sorte grande: “Achei o fóssil acidentalmente de propósito. Eu estava mesmo procurando ossos de dinossauros, mas não tinha nenhuma expectativa de realmente encontrar um".

Exemplo melhor de serendipidade do que esse, só o vazamento da conversa entre o senador Romero Jucá e Sérgio Machado nesta 2a feira de manhã. E tenho dito!

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Turquia - Parte 2: Capadócia e outras curiosidades turcas

A Turquia é um lugar curioso. Aliás, curiosíssimo. Não conseguiria resumir aqui tudo o que foi visto e sentido nos dias passados por lá, dias estes que, por sinal, já estão ficando para trás. Informação demais, comoção em triplo. 

Fora isso, contrariando um hábito arraigado meu, tomei a liberdade de não tomar nota de nada durante a viagem. Assim sendo, por mais que eu quisesse escrever um texto bonitinho sobre a Turquia, generoso em citações bibliográficas e dados históricos precisos e confiáveis, eu naufragaria no fracasso e acabaria traindo meus informantes (os quais serão, para o bem da reputação deles, mantidos no anonimato nesta publicação). 

E como eu nada anotei para poder escutar com mais atenção e fotografar com mais liberdade, então, meus caros leitores, esqueçam o texto histórico e contentem-se com o meu pequeno breviário de curiosidades turcas, que, conforme sugere o próprio nome, será breve mesmo. Atenção, contudo, para o forte teor ficcional da obra, que está ricamente ilustrada por fotografias de minha própria autoria. 

Isto posto, passemos ao breviário.

Curiosidade 1: A invenção da casa dos Smurfs


Casa nas rochas no estilo Smurf clássico. 
Os habitantes da Capadócia inventaram a casa dos Smurfs muito antes dos Smurfs serem criados. A imagem ao lado atesta a semelhança. Difícil, contudo, definir quem foi o arquiteto que teve a brilhante ideia de cavar nessas rochas de cinza vulcânica endurecida e inspirar um desenho animado que só seria veiculado alguns milhares de anos depois. Pode ter sido coisa dos hititas, dos bizantinos, dos turcos seljúcidas, dos cristãos novos, dos persas, dos mongóis... Enfim, como foram muitos os povos e os impérios que passaram por aquelas terras, é bem provável que eles estejam se engalfinhando até hoje na Corte Internacional de Justiça para definirem a quem pertence a autoria do desenho animado.

Curiosidade 2: A primeira rede internacional de hotelaria turca e o primeiro seguro contra roubo


Os turcos seljúcidas, descendentes de tribos nômades da Ásia central, saíram da região do Turcomenistão e adjacências e expandiram seu domínio até a Anatólia, região onde está localizada a Capadócia. Trouxeram com eles um forte espírito empreendedor e acabaram fundando a primeira rede internacional de hotelaria turca, caracterizada pela disseminação das Caravançarai
Caravançarai da localidade de Saruhan, na Capadócia.
Os caravançarais serviam de pousada ou estalagem para mercadores e comerciantes, oferecendo também local para armazenamento de carga e estábulo para o acondicionamento de animais de carga. Dizem as más línguas turcas que era possível percorrer toda a Rota da Seda falando apenas turco. 

Além de um serviço de hotelaria de primeira linha, os turcos reivindicam a invenção do primeiro seguro contra roubo da história. Carabineiros que percorriam a Rota da Seda pagavam aos turcos uma determinada quantia para receberem proteção durante o trajeto e, em caso, de roubo, serem ressarcidos proporcionalmente ao valor da mercadoria furtada.

Curiosidade 3: A primeira cisterna com trilha sonora TOP


Cisterna da basílica vista e ouvida de dentro.
Agora, vamos deixar um pouco a Capadócia de lado para falar de um tesouro do Império Bizantino localizado em Istambul: a Cisterna da Basílica, construída, salvo engano, no reinado de Justiniano. Outra obra arquitetônica suntuosa, a cisterna é/era alimentada por um rio que passava a 11 km dali e que fora desviado para garantir o abastecimento de água local. Mas o grande barato da cisterna é a sua trilha sonora. Por sinal, ela é a única coisa que justifica as dez liras turcas que você pagará pelo audio-guia, já que o texto falado no áudio é estritamente igual ao que está escrito nas placas afixadas no local. Mas, acreditem, vale a pena escutá-la assim mesmo!  

Curiosidade 4: O fim da Idade Média


Ruínas da muralha de Constantinopla
Alguém aí não se lembra do marco histórico que divide a Idade Média da Idade Moderna? Quem levantou a mão e gritou "a tomada de Constantinopla" (atual Istambul), antiga capital do Império Romano do Oriente, vai ganhar uma balinha e um carimbinho com "Parabéns!". 


Painel do museu encenando a tomada de Constantinopla
Recebida com desespero pelo resto da Europa, que já andava de cabelo em pé com o avanço do Império Otomano, a tomada de Constantinopla precipitou o fim do Império Bizantino. A despeito da comoção provocada na Europa cristã, o evento é cantado em prosa e verso no Panorama 1453, um museu localizado ao lado das ruínas da muralha de Constantinopla, inteiramente dedicado ao culto de Mehmet II,  o autor da conquista. Dizem as más línguas turcas que Mehmet sonhava desde criança em conquistar Constantinopla, peripécia que ele cumpriu ainda muito jovem, na idade de 21 anos. Quem visitar o museu vai sair de lá achando que Mehmet era "o" cara! 

Bem, se ele era, de fato, "o" cara, isto não é questão para resolvermos aqui hoje. Por hora, basta ressaltar que, desde sua tomada pelos otomanos, a antiga terra de Bizâncio nunca mais foi a mesma. Ela ganhou minaretas, desfigurou a cara de santos (uma prática muito comum em imagens sagradas cristãs, já que o islã não é lá muito afeito ao culto de imagens) e deu origem a uma sobreposição de crenças e cultos jamais vista antes. 


Visão parcial da abóboda da Basílica de Santa Sofia.
A prova disso é a Basílica de Santa Sofia (Hagia Sophia, ou sabedoria sagrada), ícone do Cristianismo Ortodoxo no Oriente. Transformada em mesquita logo após a tomada de Constantinopla, e em museu na década de 1930, Santa Sofia é uma mistura de influências dos dois impérios: Bizantino e Otomano. Diversas alterações foram feitas na basílica para adaptá-la à nova religião monoteísta que chegava ao poder. Guardadas as devidas proporções, é como se um álbum de figurinhas da Mônica fosse preenchido com figurinhas de jogadores de futebol. 

Certo, muitos turcos irão dizer que existem outras criações turcas mais fundamentais do que essas, como a invenção do iogurte (erroneamente atribuída aos gregos) e do tapete (erroneamente atribuída aos persas). Prefiro concluir este breviário lembrando que, se não fosse a tomada de Constantinopla e o consequente fechamentos do acesso dos cristãos à Rota da Seda, não estaríamos aqui hoje. Foi graças a esse fechamento que os navegadores portugueses e espanhóis buscaram outras alternativas de acesso às Índias e vieram parar em Pindorama, dando início à exploração do Novo Mundo.

Por fim, quero registrar a pontinha de inveja que tenho dos turcos por estes terem oferecido ao mundo o marco histórico que ele precisava para dar fim à Idade Média (ao menos, em tese). Para mim, não tem iogurte nem tapete que supere esse feito. Quem me dera se Mehmet II decidisse invadir o Planalto Central do Brasil e decretar o fim da nossa!

P.S. = Meu agradecimento especial aos meus informantes na Turquia, sem os quais esta postagem não teria sido possível.

terça-feira, 10 de maio de 2016

Turquia - Parte 1: Istambul

Mal cheguei de viagem e já começaram a pipocar perguntas todos os lados, vindas de parentes, amigos e conhecidos: como é a Turquia? É um país rico? Livre? Moderno? As mulheres usam véu? Xador? Burca? Bebem? Dirigem? Andam de bicicleta? É segura ou perigosa?

Como a lista de perguntas é longa e eu jamais saberia responder a todas elas, escolhi alguns tópicos que resumem brevemente algumas de minhas impressões sobre Istambul, local onde passei a primeira metade da minha estadia Turquia. Tive o cuidado de intercalar algumas fotos para apoiar meus argumentos. E mesmo se elas não ajudarem em nada a provar o que eu quis dizer, pelo menos poderão servir para matar a curiosidade de dois ou três incautos que por ventura venham a ler esta postagem.

Pois bem: muitos me perguntaram se a Turquia é um país rico. E eu digo que sim. Basta olhar as fotos abaixo e perceber como á agua do mar ao longo do Estreito de Bósforo aparece limpa e cristalina. É que riqueza, no meu modesto entender, passa inevitavelmente pelo respeito ao patrimônio local, seja ele natural ou construído pelas mãos do homem.


Olhar para este mar limpo e sem uma mísera sacola de plástico boiando me fez pensar na triste sina da Baía da Guanabara, cartão postal do nosso atraso. Suspirei três vezes e segui viagem.


Houve também quem se interessasse em saber se a Turquia é um país livre. Bem, há controvérsias. Alguns reclamam da opressão às mulheres turcas, outros se queixam da interferência do governo na vida cotidiana. Porém, após exame minucioso, posso afirmar que pelo menos o voo dos pássaros ainda é livre. Abaixo, dois exemplos loquazes de quem nem tudo está perdido por lá.


Ao que tudo indica (e até que se prove o contrário), a ave das fotos é uma gaivota .


Mas nem só de pássaros vive a liberdade turca. Há outro aspecto intrigante sobre os habitantes da terra de Bizâncio: ao contrário de outros países com maiorias muçulmanas, os turcos têm o hábito de beber bebidas alcóolicas. Para justificar essa frouxidão de modos um tanto quanto atípica, eles costumam fazer uma longa explanação teológica sobre as diversas linhas do Islã e sobre as variadas interpretações do Alcorão, até chegarem ao cerne da questão: "Sim, bebemos. E daí?"



A prova? A Raki Yeni, marca impressa nos porta-guardanapos da foto acima, é, na verdade, uma marca de bebida destilada, feita a partir de uvas secas. Bastante popular, por sinal.

Por fim, sempre acaba surgindo a questão do código vestimentar. Meus interlocutores não se cansam de perguntar: como se vestem os turcos - ou, mais especificamente - as turcas? As fotos abaixo falarem por si só.



No entanto, devo admitir que minha amostra, muito embora aleatória, comporta pelo menos um viés importante. Sabendo que Istambul é a Bahia do mundo árabe e que todas as fotos abaixo foram tiradas em locais bastante turísticos, eu não conseguiria distinguir, a priori, os habitantes locais dos habitantes de outros países. Portanto, é necessário alguma prudência metodológica antes de toma-las como referência da população local.




Cabelos ao vento, gente jovem reunida, com lenços coloridos, calça jeans e camisetas. O único fato incontestável é que, qualquer que seja a nacionalidade, elas passeiam lado a lado nas praças e ruas do centro histórico da cidade de Istambul.

Ok, muitos também dirão que esta região da cidade é o principal alvo de atentados por radicais islâmicos. De qualquer forma, o número de mortos em atentados na Turquia, durante o ano de 2015, nem foi tão superior assim ao número de mortos por bala perdida no Brasil, no mesmo período. Se o terror está em todos os lugares, a beleza também está.

Foi um prazer apreciar a paisagem de Istambul ao longo desses seis primeiros dias.

P.S.= Todas as fotos desta postagem são de minha autoria.