UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: julho 2016

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Fundamentalismo local

Em princípio, você acreditaria estar lendo essa notícia em qualquer jornal de países com forte apelo fundamentalista no Oriente Médio. Mas não! Ela estava lá, estampadíssima na página do jornal O Globo online, redigida em bom português e acessível para quem navegasse por lá.

A notícia em questão fala de exigências abusivas que vêm sendo impostas aos candidatos - mas particularmente às candidatas - de um concurso público para o Corpo de Bombeiros do Distrito Federal. Dentre as exigências (pasmem!), estão um exame papanicolau e o veto a candidatas com cicatrizes e tatuagens no corpo. 

Com um detalhe: nos termos do edital, "só está dispensada do papanicolau, a 'candidata que possuir hímen íntegro' e 'desde que apresente atestado médico que comprove a referida condição' ". Além disso, "não só as marcas feitas de forma voluntária na pele estão proibidas, mas também cicatrizes cirúrgicas extensas no abdômen ou tórax ou aquelas deixadas por operações ortopédicas recentes nos membros, independentemente do tamanho".

As exigências, que constam em seis editais para cargos variados do órgão, foram (muito oportunamente) questionadas pelo advogado Rudi Cassel, especialista em direito aplicado aos concursos públicos. Ele "classifica a exigência do papanicolau ou atestado de virgindade como um requisito abusivo, que, além de violar a privacidade da candidata, colocando-a em situação vexatória, é pouco eficaz para os anseios da Administração Pública".

Enquanto a Agência Brasileira de Inteligência se esmera em municiar os brasileiros com descrições vagas e estereotipadas de possíveis suspeitos de terrorismo, o fundamentalismo vai grassando pelas instâncias públicas do nosso país. Com a diferença de que, nesse caso para lá de infeliz, quem vai tomar bomba são as candidatas ao Corpo de Bombeiros do Distrito Federal.


terça-feira, 26 de julho de 2016

Digitalização unilateral

Fui ler a matéria que Sergio Matsuura escreveu sobre a revolução digital no jornalismo em busca de um bom texto informativo e fiquei a ver navios. O que lá encontrei foi a própria negação de um dos protocolos básicos de um jornalismo que se preze: mostrar um tema sob diferentes ângulos, considerando perspectivas e visões distintas sobre o mesmo.

Não que Matsuura não tenha se dado ao trabalho de buscar fontes de credibilidade para apresentar um apanhado sobre o impacto do mundo digital na profissão do jornalista. A questão é a unilateralidade dessas fontes ao abordar o fenômeno da digitalização da prática jornalística.

Joshua Benton, diretor do Nieman Journalism Lab, da Harvard University, acredita, por exemplo, que "para o jornalista, a tecnologia trouxe ferramentas antes impensáveis, que facilitaram, muito, o dia a dia da produção de notícias". Uma maior disponibilidade de bancos de dados públicos e digitalizados, municiados com ferramentas de buscas, também é reconhecida por José Roberto Toledo, do conselho da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. 

Ambos convergem para o mesmo ponto: "o jornalista hoje precisa de conhecimentos até pouco tempo impensáveis para a carreira". A nova lista de saberes e competências inclui conhecimentos em áreas como estatística, matemática e linguagens de programação, incluindo-se aí o manejo de infográficos.

"Não que o trabalho clássico do jornalista tenha sido substituído", prossegue a matéria. "Ele ainda é responsável por apurar, investigar, checar informações e escrever um bom texto, mas também precisa saber 'entrevistar os dados', para se municiar com informações mais precisas durante o trabalho de apuração". 

Até aqui, parece difícil discordar. A questão, contudo, são os lados "ausentes" da história. A digitalização, considerada isoladamente em relação ao fenômeno da convergência, diz muito pouco do perfil do jornalista que permanece hoje, de fato, empregado nas redações. 

Ora, a reunião de várias tecnologias interativas em uma mesma plataforma fez muito mais pelo jornalismo diário do que aumentar o nível de exigência em termos da qualificação exigida dos jornalistas. Ela provocou o enxugamento de redações com demissões em massa, aumento da pressão sobre a produtividade diária (menos gente para fazer mais matérias) e uma flexibilização no nível de especialização temática que o jornalista ia adquirindo dentro das editorias tradicionais.

O resultado disto está um pouco longe do perfil de "entrevistador de dados". Do ponto de vista prático, o jornalista dos veículos diários é atualmente uma espécie de faz-tudo, apressado, superficial, sem tempo sequer para entrevistar pessoas, quanto mais banco de dados de cuja linguagem ele tem um remoto domínio. Os níveis de estresse no trabalho são alarmantes. E, para dar conta do recado, só mesmo lançando mão de muita matéria pré-formatada, adquirida junto às agências de notícias. E lá se vai o tal do jornalismo investigativo bueiro adentro.

Já falei isso mais acima, mas não custa retomar: não quero dizer que Joshua Benton e José Roberto Toledo estejam errados. Faltou, contudo, chamar outros atores para completar a narrativa proposta. Os jornalistas desempregados e os sindicatos que os representam, teriam, certamente, contribuído para uma visão menos unívoca sobre o fenômeno da digitalização.

Fica aí a sugestão.

terça-feira, 19 de julho de 2016

A quarta canção

Alegria, alegria para os fãs do Baden Powell (o violonista brasileiro, não o pai do Escotismo).

Segundo notícia divulgada no jornal Folha de S. Paulo online, o Acervo Digital do Violão Brasileiro anunciou hoje a descoberta de cinco obras inéditas do antigo parceiro de Tom Jobim, falecido no ano 2000. "De acordo com Alessandro Soares, curador do acervo e responsável por divulgar a notícia, as gravações estavam e fita de rolo e foram feitas durante sarau na casa da pianista Neusa França, em 1959".

Corre a boca miúda que o material encontrado, apesar de ter sido gravado em ambiente doméstico, é até mesmo melhor do que o primeiro disco do compositor.

Das cinco canções encontradas, três são versões que foram gravadas por ele em disco anos mais tarde. São elas: "Serenata do Adeus" (de Vinícius de Morais), "Na Baixa do Sapateiro" (de Ary Barroso) e "Insônia" (dele próprio). A quinta canção é uma gravação inédita de "Valsa Op 8 nº 4", do compositor Agustín Barrios. E a quarta canção é mistério: "Começa com um baixo pedal em lá. Bem familiar. Mas até agora não descobrimos que música é essa".

Para os preocupados de plantão, que vivem perdendo noites de sono com contas vencidas e empréstimos a pagar, o mistério sobre a quarta canção de Baden pode ser uma redenção: na pior das hipóteses, este promete ser um tema bem mais ameno e poético para se pensar durante as horas de insônia.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Destoando do clima

Estado falido, baía da Guanabara suja, policiais em manifestação contra a falta de segurança nos aeroportos.

Se você achava que já tinha visto de tudo sobre a Olimpíadas do Rio de Janeiro é porque ainda não tinha se deparado com o cartaz de alerta contra o terrorismo, produzido pela Associação Brasileira de Inteligência (ABIN).

Divulgado na 6a feira passada, dia 08 de julho de 2016, o cartaz faz um relato de características típicas de um possível terrorista. De acordo com o texto, pessoas suspeitas de terrorismo "utilizam roupas, mochilas e bolsas destoantes do clima. Agem de forma estranha e demonstram intenso nervosismo". O cartaz incentiva ainda a comunicação de atitudes suspeitas para o agente de segurança mais próximo.

Pronto! Foi o suficiente para a hashtag #abin ser inundada com mensagens e fotos ironizando os dizeres do cartaz. Para se ter uma ideia do nível dos comentários, fotos como, por exemplo, a de alguém fantasiado do boneco Fofão - aquele apresentou o programa infantil Balão Mágico nos idos dos 1980 - eram associadas a legendas do tipo: "utiliza roupas destoantes do clima, age de forma estranha."

Enfim, se alguém quiser começar a semana rindo a ponto de cãibras na barriga, mesmo sem motivo que o valha, recomendo uma conferida no inventário minucioso de piadas na Internet feito pelo jornalista Ygor Salles, da Folha de S. Paulo.  

Mas se quiserem saber a versão da Abin sobre a campanha, então é melhor ir logo para o artigo do Jornal Extra, que reproduz na íntegra uma nota divulgada pela agência. Nesta, a ABIN se justifica pelo fato de que uma "comunicação oportuna de situação suspeita pode ser decisiva na detecção antecipada de ação terrorista".

Oportunismos à parte, as oportunidades de riso frouxo já andavam mesmo escassas nesses últimos dias.






quinta-feira, 7 de julho de 2016

As luas de Júpiter

Quem não está acompanhando o bafafá em torno da chegada da sonda Juno ao planeta Júpiter, pode até não estar perdendo noites de sono, mas certamente está um espetáculo bonito de se ver.

Notícia publicada hoje no jornal O Globo online reproduz vídeo da Agência Espacial Norte-americana (Nasa), com imagens "caputaradas entre os dias 12 de junho, a uma distância de 16 milhões de quilômetros do planeta, até 29 de junho, a cerca de 5 milhões de quilômetros."

O vídeo está disponível logo abaixo. 

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É interessante frisar a importância das luas de Jupiter não só para o entendimento que temos hoje deste planeta,  Na descrição que a NASA faz do vídeo, foram elas que permitiram a Galileu Galilei rever, no ano de 1610, o status de "estrela errante" que até então vinha sendo injustamente atribuído ao maior planeta do nosso sistema solar. “Dessa observação ele percebeu que as luas estavam orbitando Júpiter (visto até então como uma estrela), uma verdade que mudou para sempre o entendimento da Humanidade sobre nosso lugar no cosmos. A Terra não era o centro do Universo".

Para quem não sabe, Júpiter tem 67 satélites (luas), mas Galileu só conseguiu visualizar as quatro maiores, às quais ele presenteou os nomes de Io, Europa, Ganymede e Callisto.

Com tantas luas ao redor de Júpiter, fico imaginando como seriam coisas que nos parecem bem triviais aqui na Terra: as marés naquele planeta (claro, caso houvesse água por lá); o ciclo menstrual das jovianas (naturais de Júpiter); e como se define a melhor época para cortar o cabelo por lá. 

Expostos à influência de tantas luas, os loucos (ou lunáticos) certamente viveriam em permanente estado de êxtase, sem saber para qual lua cheia uivar mais alto. Pois Juno, após trazer evidências contundentes da beleza da dança das luas de Júpiter, nos recomenda muito cuidado: pode haver muito mais poesia nas nuvens de gases de Júpiter do que julga a nossa vã filosofia.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Águas melhores para Red River

Se ontem ele foi visto dançando Lady Gaga no meio da parada LGTBS de Toronto, hoje ele já aparece em foto abraçando dois pandas fofinhos. No sisudo e desgastado mundo da política, o Primeiro Ministro do Canadá, Justin Trudeau, é promessa de brisa leve e fresca em tarde de veranico.

Mas enquanto o mundo - e a imprensa - celebram a acensão meteórica da reputação de Trudeau (filho) e o colocam no rastro do carisma midiático conquistado pelo grande mestre Mujica, ex-presidente do Uruguai, uma notícia importante passou meses despercebida da grande imprensa.

Divulgada em fevereiro deste ano pela BBC Brasil, a notícia fala do cumprimento de uma promessa de campanha do jovem Trudeau que acabou passando ao largo dos holofotes da nossa mídia nacional. Pouco ou nenhum confete foi jogado sobre a abertura de um inquérito nacional para investigar o elevado número de mulheres indígenas desaparecidas ou assassinadas no Canadá, desde o início dos anos 1980.

Os números oficiais da Royal Canadian Mounted Police falam de 1,2 mil casos registrados entre 1982 e 2012. Contudo, em comunicado às sobreviventes e seus familiares, a Ministra dos Direitos das Mulheres, Patty Hajdu, e a Ministra para Assuntos Indígenas, Carolyn Bennett, reconheceram que o número não reflete a realidade objetiva das mulheres indígenas daquele país. "De acordo com uma pesquisa feita pela Native Women's Association of Canada (Associação de Mulheres Indígenas do Canadá, em tradução livre) e citada por Hadju nesta nova estimativa, o número mais realista é o de 4 mil casos".

A investigação do elevado número de mulheres indígenas mortas ou desaparecidas aconteceu na esteira do assassinato de uma jovem indígena de 15 anos, Tina Fontaone, cujo corpo foi achado em um saco no Red River, em Winnipeg, em agosto de 2014. No entanto, o destino da adolescente não foi muito diferente do de muitas outras mulheres indígenas da região. "Uma reportagem publicada pela BBC em abril de 2015 revelou que dezenas de mulheres indígenas desaparecem a cada ano e muitas delas tem os corpos encontradas mais tarde neste mesmo rio."

Compromisso eleitoral cumprido, fica aqui o nosso desejo de que as mesmas águas boas que levam o jovem Trudeau à crista da onda da popularidade tragam um futuro mais digno e justo para as mulheres indígenas do Canadá.