UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Crônica do orelhão vintage

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Crônica do orelhão vintage

















Era só um orelhão azul na esquina de uma tarde de domingo.

Hoje, totalmente relegado ao esquecimento pela era wifi"Provavelmente não funciona", disse uma amiga. "O pior que eu cheguei a comprar um cartão há mais ou menos um ano atrás. Tentei em uns 10 telefones no centro da cidade e não achei nenhum que funcionasse. Guardei o cartão de recordação...". Esse aí da foto, nem pude testar, pois não consegui achar meu último cartão.

Pelo menos, ao contrário das novas gerações, ainda sabemos para que ele serve.  Também, pudera! Somos remanescentes do tempo em que se usava a expressão "só agora caiu a ficha'  - prima-irmã da expressão "vê se vira esse disco". Também somos solidárias com o telefone de disco (sim, os números antes eram discados e não digitados), com o disquete flexível e com a capa plástica de proteção do computador de mesa. Hoje, quase ninguém entende o significado dessas expressões, da mesma forma que as novas gerações provavelmente nem sabem para que serve um orelhão. E, mesmo se soubessem, não saberiam nem onde conseguir o cartão para testar o funcionamento.

Quando muito, devem pensar que o orelhão é local de abrigo em dia de chuva. Imagine se, um dia, aquele vizinho de bairro que você sempre viu, mas nunca cumprimentou, resolve correr para debaixo do orelhão justamente no momento em que você chegava lá. 

Imagine a seguinte situação: nervoso, o tal vizinho chamava um Uber pelo celular.  Aliás, faz todo sentido a cena, muito mais verossímil do que o oposto: alguém de dentro do Uber ligando para um orelhão. Nisso, a chuva aperta. "Pode chegar mais para perto", disse o vizinho. "Perto? Que perto? Perto para quê? Meu pé já está ensopado", pensa você. A chuva não cede, mas você, você que vive com pressa, resolve ceder. 

E a gentileza acaba virando um abraço apertado e um beijo molhado. Logo vocês dois que, em plena era das mídias interconectadas, das comunicações interativas em tempo real, nunca tinham tido tempo para se conhecer. O tempo passa, os respectivos celulares tocam, mas o beijo continua - antes molhado, agora encharcado.

Nisso, o Uber passa, mas ninguém nota sua presença. O motorista, comovido, resolve não interromper. Chegou a pensar em descer do carro, entrar debaixo de um orelhão e ligar para o seu amor. Como os orelhões são escassos, liga dali mesmo, de dentro do carro, parado junto ao acostamento.

Nisso, uma velhinha nascida na década de 1920 - portanto, genuinamente vintage! - recém-saída da casa paroquial da Igreja de Santa Efigênia, chama um Uber pelo aplicativo do seu celular. "Uai, mas tem um aqui logo em frente da marquise!" Ela bate no vidro no exato momento em que o motorista do Uber desliga o seu celular. "Claro, minha senhora, pode entrar."

A senhora vintage, sentada no banco de trás, olha para o motorista e segreda: "Sabe, meu filho. Esse tal de smartphone é um orelhão que a gente carrega no bolso e que faz mil coisas que a gente nem imagina. Mas já teve um tempo em que namorar pelo orelhão era modernidade. Na minha juventude, a gente marcava encontro era por bilhetinho mesmo."

"Foram muitos encontros marcados ali mesmo, pertinho da casa paroquial da Igreja de Santa Efigênia", lembra saudosa a senhora vintage. Exatamente ali onde o casal recém-formado ignorava a tecnologia de ponta para se conhecer melhor.

*********

Meus agradecimentos a Sandra Rodrigues e a Maira Botelho, com quem esta bela crônica foi colaborativamente redigida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário