UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: fevereiro 2017

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Rabo preso



Cidade do interior de São Paulo, Cordeirópolis ficou sem água nesta terça-feira, 21 de fevereiro de 2017. Ela, certamente, não é a primeira e nem será a última das cidades brasileiras a viver este drama.

Mas Cordeirópolis merece entrar para os autos, porém, por pelo menos um aspecto inusitado deste evento: a supressão do abastecimento se deu em razão de uma sucuri entalada (e morta, obviamente) que obstruía a passagem de água pela tubulação de captação de água da represa de Cascalhos.

Para quem acha que tudo não passa de história de pescador, vale consultar a notícia publicada hoje no jornal Folha de S. Paulo. Está tudo lá, confirmado ipsis litteris: "a interrupção no abastecimento não foi causada por uma manutenção ou problema rotineiro, mas por uma sucuri de 3,70 metros."  

Em depoimento à rádio loca, o presidente do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae), Luiz Carlos Borges Machado da Silva, parecia, contudo, o menos surpreso de todos: "era de se esperar, porque é de conhecimento de toda Cordeirópolis o grande número de sucuris nessa represa."

Com tanta sucuri por perto, é possível que Cordeirópolis - cidade que um dia já foi a polis dos cordeiros - cogite a possibilidade de mudar de nome e passe a se chamar Sucurípolis. Quanto à sucuri, é bom saber que ela morreu pelo seu ponto fraco: "a sucuri ficou presa pelo rabo por um dos equipamentos de captação de água e acabou morrendo".

Moral da história: sucuri que morre com o rabo preso é a única que você pode abraçar sem medo. 

P.S.= Para os interessados, aprenda como evitar um ataque de sucuri clicando aqui.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

O oitavo continente



De tempos em tempos, as fronteiras entre países são redefinidas. Nós mesmos, em priscas eras, já deixamos de ser a província de ultramar para nos tornarmos um país à parte (senão nas ideias patriarcais, pelos menos no traçado geopolítico).

Mas ninguém até então tinha pensado em fundar um novo continente. Ninguém mesmo?

Errado. Segundo notícia publicada hoje no jornal Folha de S. Paulo, geólogos neozelandeses reivindicam o reconhecimento do oitavo continente  a ser chamado de Zelândia –  no sudoeste do Oceano Pacífico. Neste novo continente, as ilhas que compõem o atual país Nova Zelândia, mais o arquipélago Nova Caledônia (que nem chega a ser uma país totalmente independente, já que ainda mantém ligação com a França), nada mais seriam que "massas de terra visíveis" na superfície, isto é, cumes de montanhas que jazem submersas naquele ponto.

Não é nada, não é nada, "um artigo publicado a publicação científica 'Geological Society of America's Journal' afirma que a Zelândia tem 5 milhões de quilômetros quadrados – quase dois terços do tamanho da vizinha Austrália, que tem 7,6 milhões de quilômetros quadrados".

Mas o ponto polêmico no reconhecimento não é exatamente a extensão de terra do candidato a continente, mas qual porção dela pode ser vista acima do nível do mar, uma vez que "cerca de 94% desta área está submersa." Para além da quantidade de terra aparente na superfície, "os especialistas levaram em conta outros quatro critérios: elevação maior em relação ao entorno, geologia distinta, área bem definida e crosta mais espessa do que a do fundo do oceano." 

Apesar de não existir consenso sobre os critérios aplicáveis na definição de continente, os defensores do reconhecimento do "novo" continente argumentam que a reivindicação existe e não é de hoje. Ainda de acordo com a notícia da Folha, "o principal autor do artigo, o geólogo neozelandês Nick Mortimer, disse que os cientistas vêm se debruçando sobre as informações há mais de duas décadas para provar que a Zelândia é um novo continente."

Antes de encerrar o assunto (ao menos, por hoje), quero fazer duas considerações. A primeira delas é que, para que a Zelândia seja considerada, de fato, o oitavo continente de uma sucessão de outros já estabelecidos – África, Europa, Ásia, Oceania, Antártica - é necessário considerar as Américas como sendo duas: a do Norte e a do Sul. 

No entanto, os cientistas neozelandeses apostam justamente na continuidade existente entre as terras submersas e as visíveis para justificar seu reconhecimento. Segundo o autor principal do artigo, " 'o fato de um continente poder estar tão submerso e ainda não fragmentado' é interessante para a 'exploração da coesão e do rompimento da crosta continental' ".

Enquanto a comunidade científica reflete sobre a questão, findo a discussão com um singelo pedido: se alguém aí se lembra de ter feito campanha para que virássemos América do Sul, por favor, levante o dedo.

 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

A morte da estrela



A ciência pode até gostar dos fatos, mas acaba prestando um grande serviço à imaginação literária, principalmente quando suas imagens se tornam um campo fértil para metáforas existenciais.

Querem um exemplo?

Notícia publicada hoje no jornal Folha de S. Paulo fala da mais nova peripécia do telescópio espacial Hubble, que teria registrado "o momento exato da morte de uma estrela, um fenômeno que os astrônomos raramente conseguem ver."

Segundo a notícia, divulgada simultaneamente pela Agência Espacial Norte Americana (NASA) e pela Agência Espacial Europeia (ESA), o evento teria se passado a 5 mil anos-luz da Terra, na Constelação de Puppis, colocando a Nebulosa Cabalash no centro das atenções: "A imagem mostra uma estrela, chamada de gigante vermelha, no seu estágio final, no qual libera nuvens de gás e poeira para se transformar em uma nebulosa planetária."

Conhecida como a "Nebulosa do Ovo Podre" em função da sua elevada concentração de enxofre, Cabalash deu seu próprio show, com direito a jatos de gás e muita poeira cósmica: "Os jatos de gás – que aparecem em amarelo – e a poeira cósmica são liberados em direções opostas a uma velocidade de um milhão de quilômetros por hora, explicam os cientistas."

Pirotecnias à parte - e deixando de lado a analogia ao ovo podre - não haveria melhor maneira de referir ao crítico literário Tzvetan Todorov do que recorrendo à imagem da explosão da gigante vermelha. Porém, não é propriamente seu falecimento aos 77 anos de idade em um hospital de Paris que o aproxima do destino das estrelas: é sua vida - e toda a potência crítica da sua obra - que imprimem no universo o seu poder transformador. 
  
Mesmo não estando listado entre suas obras mais relevantes no pequeno obituário preparado pela Folha de S. Paulo, quero deixar aqui o meu tributo ao autor e ao seu livro "A Conquista da América". Obra impactante e analiticamente refinada, "A Conquista da América" encontra na análise Semiótica uma explicação plausível para o processo de conquista e dominação da América pelos espanhóis, que aqui chegaram em flagrante inferioridade numérica (estima-se que a população nativa das Américas estivesse em torno de 25 milhões de pessoas à época da descoberta).

Leitura obrigatória para os tempos atuais, "A Conquista da América" conta uma história inteligente sobre a narrativa da dominação, capaz de liberar pensamentos críticos com mesma a potência devastadora dos jatos de gás liberados pela explosão da gigante vermelha.

Sem dúvida, um livro a ser devorado sem comedimento, enquanto houver poeira cósmica no Universo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Entre fatos e águas vivas



Essa é para quem se interessa pelos "fatos" da ciência.

Ao contrário do que rezam os cânones do jornalismo dito "informativo" - fatos não apenas fatos. São construções interpretativas sobre algumas "evidências" percebidas no mundo. Mas a interpretação, em si, não é o problema. O problema é quando o interpretador escorrega na casa de banana e perde a oportunidade de estabelecer conexões importantes entre evidências tidas até então como isoladas. Aí, então, lascou tudo...

Vamos, então, ao caso do dia. Notícia publicada no jornal O Globo online de hoje fala da descoberta de "vestígios fossilizados do deuterostômio Saccorhytus, que viveu 540 milhões de anos atrás." Na notícia, o deuterostômio é descrito como "o antepassado mais distante conhecido dos seres humanos — assim como o de uma ampla gama de outras espécies."

A notícia, obviamente, não deixar escapar aqueles dados tidos como os mais fundamentais para o noticiário diário de ciência, tais como o local da descoberta (região central da China) ou o nome de pelo menos um dos autores do estudo que acaba de ser publicado na revista Nature (Simon Conway Morris, da Universidade de Cambridge, é quem, no final das contas, acabou ganhando notoriedade em nome de toda a equipe internacional que realizou o estudo). 

Até aí, nenhuma novidade. O noticiário de ciência no país continua girando em torno praticamente dos artigos recém-publicados nas revistas internacionais, a maior parte deles de autoria de pesquisadores do hemisfério norte - mesmo que estes façam parte de equipes internacionais. Além disso, em tempos de crise braba e de corte de pessoal nas redações, ninguém mais tem tempo de cobrir notícia fresquinha de ciência, nem sequer discutir o desmonte da educação e da ciência no país. A moda é requentar notícia enviadas pelas agências internacionais, mesmo sem nenhum aviso explícito ao leitor (como parece ser o caso da notícia em questão). 

Mas a questão agora não é nem essa. Ao descrever aspectos morfológicos importantes do deuterostômio - "apenas um milímetro de comprimento", "corpo simétrico", "pele fina e flexível" e boca "desproporcional ao resto do corpo" - a notícia (ou melhor, seus redatores) deixa passar em brancas nuvens uma das características mais intrigantes do espécime encontrado: "Os pesquisadores foram incapazes de encontrar qualquer evidência de que o animal tinha um ânus, o que sugere que ele consumia alimentos e excretava-os a partir do mesmo orifício."

Ora, muito mais do que uma mera curiosidade anatômica, a ausência de ânus contradiz uma característica distintiva crucial nos deuterostômios: durante seu desenvolvimento embrionário, a formação do ânus antecede a formação da boca. Portanto, se, "até agora, os grupos de deuterostômios conhecidos teriam vivido entre entre 510 e 520 milhões de anos", este espécime recém-descoberto na China, que tem cerca de 540 milhões de anos, coloca em xeque o próprio critério de classificação deste grupo.

Em outros termos: não apenas a notícia deixou de enfatizar o caráter verdadeiramente original da descoberta, como também deixou de fazer perguntas bastante simples, mas pertinentes: o que pode ter acontecido aos deuterostômios, em termos evolutivos, nesse lapso de tempo? Como explicar a ausência de ânus nos fósseis mais antigos? E por aí vai...

A ausência de perguntas pertinentes, por sinal, parece coqueluche no jornalismo dos "fatos". Coisa muito parecida aconteceu no jornal Folha de S. Paulo, que noticiou hoje o crescimento assombroso do número de queimaduras causadas por águas-vivas no litoral do Paraná: segundo a notícia, "mais de 25 mil banhistas já foram queimados por águas-vivas em praias do litoral do Paraná em um período de 40 dias, de acordo com o Corpo de Bombeiros". No mesmo período do ano passado, foram registrados 9.455 casos."

Para dar as devidas explicações sobre o "fato", a repórter Martha Alves consultou a bióloga Tânia Portella, coordenadora da Divisão de Zoonoses e Intoxicação da Sesa (Secretaria de Estado da Saúde). Esta última relatou "que o fenômeno tem se tornado comum nos últimos anos devido ao comportamento das correntes marítimas e às condições favoráveis para a reprodução das águas-vivas".

Mas custava a repórter perguntar à sua fonte o que teria mudado no comportamento das correntes marinhas a ponto de alterar favoravelmente as condições de reprodução das águas-vivas? Não, não custava. Mas fica aí mais uma evidência de que quando as perguntas pertinentes não são feitas para as pessoas certas, os "fatos" acabam morrendo na praia rasa do jornalismo, provavelmente queimados por alguma água-viva. 

Enfim, muito pior do que querer mostrar apenas "fatos" é esperar que eles sejam auto-explicativos.