UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Entre fatos e águas vivas

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Entre fatos e águas vivas



Essa é para quem se interessa pelos "fatos" da ciência.

Ao contrário do que rezam os cânones do jornalismo dito "informativo" - fatos não apenas fatos. São construções interpretativas sobre algumas "evidências" percebidas no mundo. Mas a interpretação, em si, não é o problema. O problema é quando o interpretador escorrega na casa de banana e perde a oportunidade de estabelecer conexões importantes entre evidências tidas até então como isoladas. Aí, então, lascou tudo...

Vamos, então, ao caso do dia. Notícia publicada no jornal O Globo online de hoje fala da descoberta de "vestígios fossilizados do deuterostômio Saccorhytus, que viveu 540 milhões de anos atrás." Na notícia, o deuterostômio é descrito como "o antepassado mais distante conhecido dos seres humanos — assim como o de uma ampla gama de outras espécies."

A notícia, obviamente, não deixar escapar aqueles dados tidos como os mais fundamentais para o noticiário diário de ciência, tais como o local da descoberta (região central da China) ou o nome de pelo menos um dos autores do estudo que acaba de ser publicado na revista Nature (Simon Conway Morris, da Universidade de Cambridge, é quem, no final das contas, acabou ganhando notoriedade em nome de toda a equipe internacional que realizou o estudo). 

Até aí, nenhuma novidade. O noticiário de ciência no país continua girando em torno praticamente dos artigos recém-publicados nas revistas internacionais, a maior parte deles de autoria de pesquisadores do hemisfério norte - mesmo que estes façam parte de equipes internacionais. Além disso, em tempos de crise braba e de corte de pessoal nas redações, ninguém mais tem tempo de cobrir notícia fresquinha de ciência, nem sequer discutir o desmonte da educação e da ciência no país. A moda é requentar notícia enviadas pelas agências internacionais, mesmo sem nenhum aviso explícito ao leitor (como parece ser o caso da notícia em questão). 

Mas a questão agora não é nem essa. Ao descrever aspectos morfológicos importantes do deuterostômio - "apenas um milímetro de comprimento", "corpo simétrico", "pele fina e flexível" e boca "desproporcional ao resto do corpo" - a notícia (ou melhor, seus redatores) deixa passar em brancas nuvens uma das características mais intrigantes do espécime encontrado: "Os pesquisadores foram incapazes de encontrar qualquer evidência de que o animal tinha um ânus, o que sugere que ele consumia alimentos e excretava-os a partir do mesmo orifício."

Ora, muito mais do que uma mera curiosidade anatômica, a ausência de ânus contradiz uma característica distintiva crucial nos deuterostômios: durante seu desenvolvimento embrionário, a formação do ânus antecede a formação da boca. Portanto, se, "até agora, os grupos de deuterostômios conhecidos teriam vivido entre entre 510 e 520 milhões de anos", este espécime recém-descoberto na China, que tem cerca de 540 milhões de anos, coloca em xeque o próprio critério de classificação deste grupo.

Em outros termos: não apenas a notícia deixou de enfatizar o caráter verdadeiramente original da descoberta, como também deixou de fazer perguntas bastante simples, mas pertinentes: o que pode ter acontecido aos deuterostômios, em termos evolutivos, nesse lapso de tempo? Como explicar a ausência de ânus nos fósseis mais antigos? E por aí vai...

A ausência de perguntas pertinentes, por sinal, parece coqueluche no jornalismo dos "fatos". Coisa muito parecida aconteceu no jornal Folha de S. Paulo, que noticiou hoje o crescimento assombroso do número de queimaduras causadas por águas-vivas no litoral do Paraná: segundo a notícia, "mais de 25 mil banhistas já foram queimados por águas-vivas em praias do litoral do Paraná em um período de 40 dias, de acordo com o Corpo de Bombeiros". No mesmo período do ano passado, foram registrados 9.455 casos."

Para dar as devidas explicações sobre o "fato", a repórter Martha Alves consultou a bióloga Tânia Portella, coordenadora da Divisão de Zoonoses e Intoxicação da Sesa (Secretaria de Estado da Saúde). Esta última relatou "que o fenômeno tem se tornado comum nos últimos anos devido ao comportamento das correntes marítimas e às condições favoráveis para a reprodução das águas-vivas".

Mas custava a repórter perguntar à sua fonte o que teria mudado no comportamento das correntes marinhas a ponto de alterar favoravelmente as condições de reprodução das águas-vivas? Não, não custava. Mas fica aí mais uma evidência de que quando as perguntas pertinentes não são feitas para as pessoas certas, os "fatos" acabam morrendo na praia rasa do jornalismo, provavelmente queimados por alguma água-viva. 

Enfim, muito pior do que querer mostrar apenas "fatos" é esperar que eles sejam auto-explicativos.

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