Bacana! Hoje o jornal Folha de S. Paulo online deu uma aula hoje sobre como misturar espaço publicitário com jornalismo pouco informativo.
O pior é que o tema era interessante e tinha tudo para dar certo. A notícia abordava a experiência de "um grupo de daltônicos [que] conseguiu enxergar todas as cores pela primeira
vez com a ajuda de um óculos especial, criado por uma empresa de tintas" (http://f5.folha.uol.com.br/voceviu/2015/03/1609220-daltonicos-enxergam-todas-as-cores-pela-primeira-vez-com-oculos-especial-assista.shtml).
O leitor então há de se perguntar: "o que tem de errado com a notícia?" O problema reside na propagação das benesses de um produto, sem que se tenha o cuidado de questioná-la ou colocá-la sob perspectiva. A notícia é taxativa: "as lentes são capazes de separar os tons e derivações do vermelho e do
verde, que geralmente são percebidos como iguais pelos daltônicos, e,
assim, corrigir a visão deficiente".
"E o que de mal há nisso?", retruca, inquieto, o leitor deste blog (e possível leitor da notícia também).
O problema reside em repercutir tão somente o viés das empresas envolvidas: "A companhia americana Valspar, gigante do setor, desenvolveu o acessório
em parceria com a EnChroma, que pesquisa a percepção das cores." Trocando em miúdos, a notícia banca a versão apresentada apenas pelos desenvolvedores do utensílio, cujo principal interesse parece ser o de promover o lançamento de "um minidocumentário produzido pela empresa", registrando "a reação de
daltônicos ao enxergarem um espectro maior de cores pela primeira vez".
"E quem pode provar que as empresas estão erradas?", prossegue o leitor.
Bom, basta ler o primeiro comentário de um leitor que se identifica como Legionário. Diz ele: "A coisa não se passa como aparece na reportagem. Ninguém põe um óculos
especial e instantaneamente passa a ver todas as cores. O próprio
fabricante do óculos alerta que a melhora é lenta e gradual e que o
óculos só funciona em locais ensolarados. Não funciona dentro de
automóveis e edificações. Eu mesmo tenho um desses e sei como as coisas
são. Antes de comprar esses óculos, informe-se melhor".
Alternativas? Várias! A primeira precaução seria buscar, logo de cara, um usuário concreto dos óculos em questão. Além disso, nunca é demais ouvir a opinião de especialistas - oftalmologistas, pesquisadores, fabricantes de lentes - que não tenham nenhum comprometimento ou benefício direto com o desenvolvimento do produto apregoado. Resumindo: a Folha poderia ter feito muito mais do que simplesmente transcrever o conteúdo informado pelo press release do fabricante dos óculos em questão e submetido o artefato a um escrutínio mais rigoroso.
Fosse aquele espaço jornalístico um pouco mais sério, ele teria usado mais do que uma simples fonte para a notícia. Afinal, antes isso do que passar o "carão" de ter sido desmentido por um leitor daltônico, usuário do óculos em questão. Faltou, no final das contas, vontade para traçar uma fronteira nítida entre jornalismo e publicidade, lembrando que esta última apresenta, de forma descarada mas nem por isso menos legítima, a versão do anunciante. Uma diferença protocolar que não deveria jamais ser esquecida!
A autora criou esse blog para divagar sobre o que lê diariamente nos jornais, com foco principalmente (mas não exclusivamente) na cobertura diária de ciência. Suas principais armas são a ironia de inspiração machadiana e um computador bacaninha (ela tirou o escorpião do bolso e comprou um de verdade). Ao citar alguma passagem, por favor, dê créditos para a autora: até para as grandes bobagens o direito autoral é inalienável.
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