UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: A insustentável criatividade do morrer

terça-feira, 24 de março de 2015

A insustentável criatividade do morrer

Diante do óbvio, o insustentável.

Laudo médico oficial sobre causa de morte da poeta e ativista Shaimaa el-Sabbagh, falecida em 24 de janeiro deste ano no Egito, durante manifestação em homenagem ao aniversário da eclosão da Primavera Árabe,
indica ausência de camada adiposa. Foi o que alegaram as autoridades egípcias no último sábado, dia 21 de março:  "o porta-voz do serviço médico legal egípcio declarou em entrevista na televisão que Sabbagh, 31, não teria morrido se não fosse tão magra" (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/03/1606807-ativista-morreu-em-protesto-por-ser-magra-demais-dizem-legistas-egipcios.shtml).

De acordo com o porta-voz egípcio Hisham Abdel Hamid, a ativista "era magra demais. Não tinha qualquer porcentagem de gordura. Por isso, os chumbinhos penetraram com muita facilidade, e quatro ou cinco de todos os chumbinhos que penetraram seu corpo (...) penetraram seu coração e pulmões, e foram eles que causaram sua morte."

Além de esfarrapada, a desculpa não deixa de surpreender pelo seu elevado teor de criatividade e cinismo. Aliás, criativa em termos: o recurso a uma dada prática de retórica que consiste em inverter a responsabilidade pelo dano e imputá-lo à vítima é mais velho do que andar para a frente. Algo equivalente acontece no adágio "mulheres de minissaia merecem ser estupradas" e outros horrores do gênero.

Agora, se o leitor está achando que o problema é árabe e ninguém tem nada a ver com isso, aqui vai outra notícia: a prática da polícia brasileira de registrar a morte de indivíduos resultante do confronto em áreas desfavorecidas como "autos de resistência" (morte resultante de resistência à prisão) não fica muito distante disso (http://oglobo.globo.com/brasil/ausencia-de-controle-dos-autos-de-resistencia-expoe-precariedade-de-rede-de-dados-10686767). Há falta de registros confiáveis, subnotificação de mortes resultante e fraude na atestação da causa mortis (leia-se "execução sumária" sem existência de qualquer confronto com a polícia).

Uns magros demais, outros negros demais, outros pobres e desprestigiados demais. Pouco importa. A criatividade não encontra limites quando se trata de esconder o óbvio e legitimar o insustentável.

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