UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Sangue ilegal

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Sangue ilegal

Aos que advogam pela popularização da ciência, não custa lembrar: lembrar os erros e abusos da ciência é uma missão moral. Afinal, se não nos lembrarmos das derrapadas passadas, como iremos corrigi-las no presente?

Um exemplo disso são as devoluções de amostras de sangue de povos Ianomâmis, coletadas ilegalmente por instituições de pesquisa norte-americanas nos idos dos anos 1960. Essas devoluções vem sendo mediadas pelo nosso Ministério Público Federal, que vem mediando a devolução "aos índios ianomâmis, nesta segunda-feira (21), [de] 474 amostras de sangue coletadas por cientistas norte-americanos sem consentimento dos índios e sem autorização brasileira, em 1967".

A querela com as instituições de pesquisa norte-americanas começou com a publicação do livro "Trevas no Eldorado", pelo jornalista norte-americano, Patrick Tierney, em 2000. Tierney acusou o geneticista James Neel e o antropólogo Napoleon Chagnon de recolherem, sem consentimento, milhares de amostras de sangue ianomâmi no Brasil e na Venezuela.

Desde então, o Ministério Público Federal vem mapeando, "por meio de uma articulação entre sua Secretaria de Cooperação Internacional e o Itamaraty", a localização das "amostras recolhidas ilegalmente e negociar, extrajudicialmente, com as instituições nos Estados Unidos". Dentre as portadoras dessas amostras, encontram-se a Universidade Estadual da Pensilvânia, o Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos,  a Universidade de Ohio, a Universidade Northwestern e a Universidade da Pensilvânia. De acordo com a procuradora Deborah Duprat, "coordenadora da Câmara do MPF que atua na defesa dos povos indígenas, o Brasil 'não tem nenhuma informação' sobre que tipo de pesquisa foi ou seria feita com o sangue coletado irregularmente".

Apesar da devolução, a responsabilização dos responsáveis pelas coletas parece ser algo um tanto quanto remoto. O geneticista James Neel acabou falecendo em 2000, ano da publicação do livro-denúncia, sem sequer ter sido investigado. Quanto ao antropológo, Napoleon Chagnon, este acabou inocentado pela Associação Americana de Antropologia. Na visão da Procuradora Duprat, "como as coletas foram realizadas na década de 1960, quando não havia leis específicas, não há como punir agora os responsáveis".

A primeira remessa das amostras chegou ao Brasil em abril de 2015, vindas da Universidade Estadual da Pensilvânia. As atuais foram trazidas do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos. Todas as amostras estão sendo encaminhadas à aldeia ianomâmi localizada em Roraima, para serem enterradas. "Para a etnia, o enterro tem um importante valor simbólico", explica a notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo. Nas palavras do líder ianomâmi, Davi Kopenawa, "a terra é nossa mãe, então, tem que devolver para ela".

A única coisa que  jamais terá devolução serão as resultados das pesquisas realizadas com amostras de sangue ilegais dos Ianomâmis. Esses aí, por sua vez, não merecem nem sequer serem lembrados.

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