UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Ser o que se é... com a ajuda de Gloria Gaynor!

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Ser o que se é... com a ajuda de Gloria Gaynor!



Em tempos em que a palavra "bullying" é recitada pelos quatro cantos a ponto de merecer incorporação defintiva ao Dicionário Aurélio, a belíssima canção de Gloria Gaynor "I Am What I Am" tem muito a nos ensinar. Primeiro, porque ela é um grito de afirmação da identidade - com suas nuances, contornos e percalços próprios - num mundo que teima em rejeitar as pequenas e grandes diferenças em proveito de um padrão único: de beleza, de comportamento, de reflexão. Em segundo lugar porque, ao escutá-la numa aula de biodança na última 2a feira, ela me trouxe também à memória um evento marcante da minha infância que gostaria de narrar brevemente aqui. Tal evento, curiosamente, tem tudo a ver com práticas subreptícias de "bullying".

Estávamos, mais precisamente, em meados no ano de 1984. Naqueles tempos, eu estudava em um colégio estadual da região central de BH. As mães de algumas alunas haviam preparado uma festa surpresa de aniversário para a professora da nossa turma. A festa, eu me lembro bem, aconteceu em horário de aula, numa sala ampla onde tínhamos nossas aulas de artes.

Entre os vários números preparados pelos alunos, lá estávamos eu e a minha amiga S com um número de dança. A coreografia havia sido confeccionada por S especialmente para a ocasião e tinha como base a canção de Gloria Gaynor. S, que hoje é cantora profissional, além de deter uma voz das mais prodigiosas já naquela época, também dançava divinamente. E eu, que era muito bem intencionada mas não dançava quase nada, topava qualquer coisa para estar no meio da festa.

E não é que estávamos lá, bem no meio do nosso tão ensaiado número, cujos passos seguiam engenhosamente a marcação da música (obra de S, não minha), quando, de repente, a música é cortada e adiantada. Eu, que tinha ensaiado muito para compensar a falta de dom natural, perdi literalmente o rebolado e a sequência dos passos. S, que era mais esperta, conseguiu retomar o ritmo mais adiante e tocar o barco para frente. Sem entender direito o que estava acontecendo, continuamos dançando, tentando retomar a sincronia dos passos.

Opa! De novo! A música é mais uma vez adiantada. Mais descompasso. S dança de um jeito, eu danço de outro. Olho para a radiola (tá bom, admito: sou do tempo da radiola!) e entendo o truque: a mãe de uma das alunas estava "adiantando" a música propositalmente. Fiquei querendo reclamar, sem saber o que fazer, dançando de qualquer jeito e S, salvando a pátria, fazendo de tudo para a peteca não cair. A música acaba e os aplausos são poucos para compensar o evidente vexame.

Na época, o motivo alegado pela mãe era o atraso na programação da festa, o que justificaria então alguns cortes na música, tudo isso feito - claro - sem consulta e aviso prévio. O sentimento de indignação ficou ainda maior quando percebemos que o número dançado pelas filhas das mães organizadoras - a música do "biquini amarelinho" - não foi cortada. "Sacanagem!", pensamos.

Levei anos tentando entender a razão daquele ato de sabotagem gratuito. Mas só na última 2a feira é que uma possível explicação me saltou aos olhos. S, que era minha melhor amiga na época, era uma das primeiras alunas da turma, dançava muito e cantava mais ainda. S não era pobre, pelo contrário: tinha pai e mãe formados em Direito e vivia com algum conforto no bairro Padre Eustáquio. Só que S era... negra! Negra numa turma de colégio supostamente público, mas que mantinha na ordem do dia toda sorte de artifício para a manutenção de clivagens sociais e raciais as mais mesquinhas. S era tudo o que não esperava dela: negra, bonita, inteligente e talentosa.

Ao longo dos 9 anos que estive nesse colégio, presenciei diversas cenas de discriminação vividas por S. Foram várias e várias delas. Mas nunca correlacionei este fato específico com as demais situações de discriminação. A associação entre o evento em questão com um suposto incômodo diante daquela figurinha cheia de talentos só me ocorreu agora. O mais engraçado, fico aqui pensando, é que só agora também que me dou conta de que a canção da Gloria Gaynor já trazia em si o melhor soro-antiofídico para aquela pequena perversidade: "I am what I am and what I am need no escuses".

Também não é à toa que, passados muitos anos daquele e de outros eventos de discriminação presenciados na escola pública, a memória da indignação ainda me é muito presente. Talvez, uma forma de resolver esse desconforto existencial tenha sido a defesa de uma tese de doutorado sobre discriminação racial em 2008. Quanto a S, tive a grata oportunidade de tocar nesse assunto com ela no início desse ano. Falei do tema da minha tese e do quanto a postura de resistência dela foi crucial para despertar em mim um outro senso de justiça. Foi da boca dela, aliás, que ouvi pela primeira vez a palavra "discriminação".

Por essas e por outras, meus caros, pensem bem no ambiente que filhos, sobrinhos, netos e outras crianças de suas relações frequentam. Que seja esse um ambiente que prime pela diversidade e pelo respeito às diferenças. Sem restrições.

P.S.= A propósito, é por essas e por outras que sou totalmente favorável à política de cotas no Brasil.

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