UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Regra e exceção

terça-feira, 4 de junho de 2013

Regra e exceção

Duas matérias publicadas hoje nas versões online de dois jornais de repercussão nacional colocam em perspectiva duas formas distintas de lidar com a herança dos nossos antepassados.

No jornal Folha de S. Paulo online, notícia evidencia estudo do campo da Antropologia Física põe em destaque um legado do processo evolutivo que, em princípio, teria nos demarcado dos macacos. Digo "em princípio" porque o foco da notícia é justamente o resquício de uma marca que mais nos aproxima do que propriamente separa dos primatas: "cerca de 8% da população têm flexibilidade maior da planta do pé, comparável à de macacos que vivem nas árvores", relata (http://oglobo.globo.com/ciencia/parte-da-humanidade-dobra-os-pes-como-macacos-que-vivem-em-arvores-8576475).

A herança evolutiva teria, inclusive, sido confirmada por dois estudos diversos. O primeiro deles, de autoria dos médicos Jeremy de Silva e Simone Gill, foi publicado na revista American Journal of Physical Anthropology. O segundo estudo é assinado por Robin Huw Crompton, da Universidade de Liverpool (ainda que a publicação em anais de pesquisa ou em periódicos não seja explicitamente mencionada). De qualquer forma, ambos os estudos convergem neste mesmo ponto: algumas pessoas têm os ligamentos da planta do pé mais flexíveis do que outras e que isto seria um traço conservado de antepassados em comum com os macacos.

De forma muito mais autocrítica, a questão da herança colonial é colocada em xeque nos museus de países como a Alemanha, Estados Unidos e Grã-Bretanha, que "que começaram a receber reivindicações de repatriação de restos humanos", conservados nestes mesmos museus (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/06/1288666-museus-devolvem-restos-mortais-roubados-de-antigas-colonias.shtml).

"Muitos dos museus do mundo, especialmente os de história natural, ciência, medicina e arqueologia, possuem restos mortais humanos", explica a matéria. Por trás das demandas de repatriamento dos restos mortais, questionamentos profundos sobre a preservação da dignidade dos mortos e o sobre o direito de seus herdeiros de enterrá-los segundo seus costumes.

Neste contexto, a divulgação de "novas diretrizes éticas para museus sobre o tratamento a ser dado a restos mortais" pela Associação Alemã de museus, em abril deste ano, é mais uma iniciativa na senda daquelas tomadas por outros museus como o Instituto Smithonian, de Washington, que "começou a repatriar ossadas de indígenas americanos no final da década de 1980" e, "restos mortais humanos à Austrália" em 2008 e 2010.

Como já era de se esperar, este movimento de repatriamento encontra resistência entre pares: para a socióloga Tiffany Jenkins, autora de Contesting Human Remains in Museum Collections, "o perigo é que os museus deixem de explorar porque terão outras prioridades" e que "há toda uma gama de pesquisas que estão deixando de ser feitas porque envolvem questões delicadas demais."

De maneira muito oportuna (ainda que não com a ênfase merecida), a matéria conclui, ressaltando o medo que as demandas de repatriamento vêm despertando no meio museológico: "devolver restos mortais provoca mal-estar entre os museus, receosos de que essa repatriação possa intensificar também as reivindicações de devolução de objetos de arte saqueados."

Moral da história: regra e exceção são conceitos altamente voláteis no contexto das ciências pós-coloniais. Para muitos curadores, museólogos e cientistas, é até concebível repatriar restos mortais de indivíduos que, na maior parte das vezes, não passaram de indigentes disponíveis para a admiração pública. Mas devolver objetos (saqueados, via de regra) que encerram, a um só tempo, valor histórico, estético e monetário, bem, aí já é pedir demais. Para ver esta exceção se tornar regra, é bem provável que tenhamos que esperar ainda um tempo considerável - suficiente, talvez, para que os 8% de humanos com plantas dos pés flexíveis deixem de ser exceção e se conformem à regra.
 






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