UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: O cético e o passado

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O cético e o passado

Não é fácil sobreviver em um mundo tão incerto como o que vivemos, sem ao menos uma vaga noção de passado coletivo. É que quanto mais "elásticas" as nossas certezas e crenças, maior o sentimento de desamparo diante da vastidão de possibilidades de "vir a ser". Tal sentimento, claro, não diz respeito apenas ao que estar por vir, mas também ao que deixamos para trás.

Talvez seja por isso que museus e sítios arqueológicos ainda mobilizem o entusiasmo de tanta gente. Até aí, nada demais: eles também mobilizam o meu entusiasmo. Mas é estranho ver em que medida as condições socioeconômicas influenciam diretamente nas condições de recriação desse passado coletivo.

A discussão pede casos concretos. Por exemplo, Bastou a historiadora equatoriana Tamara Estupiñan, ligada ao Instituto Francês de Estudos Andinos (IPEA), anunciar a provável localização do túmulo de Atahualpa, o último imperador inca, para toda a comunidade científica internacional crescer o olho em cima da descoberta: "Último Tupac, ou imperador do império inca, domínio que se espalhou pela Colômbia atual até o Chile e a Argentina, Atahualpa foi executado pelos colonizadores espanhóis em 1533, mas sua múmia nunca foi encontrada" (http://www.hojeemdia.com.br/noticias/misterio-do-tumulo-do-ultimo-imperador-inca-a-um-passo-da-elucidac-o-1.410514).

Utilizando estudos linguísticos para localizar a provável tumba do Último Tupac, a pesquisadora equatoriana já ganhou o apoio político não só de autoridades locais - como a ministra equatoriana do Patrimônio, Maria Fernanda Espinosa - como também a simpatia de "pares" como a arqueóloga americana Tamara Brau, da Universidade Wayne State no Michigan, e também do Instituto nacional do Patrimônio Cultural do Equador, o qual já "se prepara para financiar novos estudos, a partir deste ano".

O único descrente nesta história é Francisco Moncayo, proprietário do local onde está localizada a suposta tumba de Atahualpa. Em pleno território Malqui, às margens do rio Machay, "o terreno, antes sagrado, pertence atualmente a um criador de galos de briga, uma tradição local". Enquanto a hipótese de descoberta é tomada como certa pela comunidade científica afora, ele é o único a se arriscar no papel cético: "Tamara [a arqueóloga equatoriana] também recorre à linguística, frisando que Malqui é a múmia do inca e que Machay é um local de repouso. E como a múmia de Atahualpa nunca apareceu, pode ser que ainda esteja lá ... ou não", pondera o próprietário.

Hesitação de alguém cioso de que o espaço ocupado pela sua criação está em vias de se tornar um dos mais visitados sítios arquelógicos do Equador ou simplesmente uma bela demonstração de ceticismo metodológico? Pouco importa. Na melhor das hipóteses, o terreno será desapropriado e seu proprietário, devidamente indenizado. O que não passa de elocubrações sem fundamento de minha autoria, já que nada é dito a respeito de indenização nas páginas do jornal Hoje em Dia online.

Enquanto isso, nos EUA, investimentos de grande monta visam a reconstruir uma outra dimensão do passado. Desta vez, é a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood que comemora o retorno de um dos pares de sapatos vermelhos utilizados pela atriz Judy Garland no filme O Mágico de Oz: "A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas disse na quarta-feira que havia adquirido, com a ajuda de Leonardo DiCaprio e Steven Spielberg, um dos quatro pares sobreviventes dos sapatos lendários feitos para o filme de 1939".

A matéria publicada hoje na Folha online de hoje relata que graças à liderança dos dois ícones da indústria cinematógráfica norte-americana, um grupo de "doadores anjos" conseguiu angariar os fundos necessários para a compra dos sapatos. E cá para nós, haja liderança: "os sapatos foram postos à venda pela casa de leilão de Los Angeles Profiles in History em dezembro, com um preço estimado em 2 a 3 milhões de dólares. Mas funcionários da casa de leilão disseram que eles não foram vendidos na época".

Comprados por um preço não-revelado ao grande público, a campanha de arrecadação corrobora a estima e consideração dos abastados para com a sua história e tradição. É o CEO da Academia, Dawn Hudson, que dá a dimensão do investimento: "É um presente maravilhoso para o projeto do museu da Academia, e uma mostra perfeita do trabalho que fazemos durante o ano todo para preservar e compartilhar nosso patrimônio cinematográfico", afirma.

Bem, cada qual com seu passado. E cada qual com sua prioridade... Mas que dois ou três doares desses aí fariam a alegria do Sr. Moncayo, ah, isso fariam!

Nenhum comentário:

Postar um comentário