UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Poesia de auto-ajuda

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Poesia de auto-ajuda

Nenhuma pesquisa, em nenhum lugar que esta galáxia há de comer, conseguirá abstrair seja do seu contexto sócio-histórico, seja das diversas motivações - pessoais, sociais e acadêmicas - do pesquisador. Isto posto, não vou nem perder meu tempo defendendo a suposta "neutralidade científica", tão real quantos os Smurfs ou os Muppet Babies.

Mas confesso que fiquei intrigada com esta pesquisa comentada hoje na Folha de S. Paulo online, a qual tenta provar a eficácia das poesias: "Ler autores clássicos, como Shakespeare, William Wordsworth e T.S. Eliot, estimula a mente e a poesia pode ser mais eficaz em tratamentos do que os livros de autoajuda, segundo um estudo da Universidade de Liverpool publicado nesta terça-feira (15)."

Mais intrigante ainda é o percurso metodológico para se chegar a esta conclusão: "Especialistas em ciência, psicologia e literatura inglesa da universidade monitoraram a atividade cerebral de 30 voluntários que leram primeiro trechos de textos clássicos e depois essas mesmas passagens traduzidas para a 'linguagem coloquial' ". A conclusão da pesquisa está mais anunciada do que a morte no livro "Crônica de uma morte anunciada", mas com uma desvantagem grande em relação ao romance de Gabriel García Márquez: neste último, a trama é tão envolvente que deixa o espetacdor no suspense até o último minuto.

A bem da verdade, o que dados apontam mesmo é uma elevação da atividade cerebral com a leitura de poesia: "Os resultados da pesquisa, antecipados pelo jornal britânico 'Daily Telegraph', mostram que a atividade do cérebro 'dispara' quando o leitor encontra palavras incomuns ou frases com uma estrutura semântica complexa, mas não reage quando esse mesmo conteúdo se expressa com fórmulas de uso cotidiano."

Mas a conclusão que se tirou a partir daí varre qualquer possibilidade de suspense para anos-luz bem longe daqui:"Os especialistas descobriram que a poesia 'é mais útil que os livros de autoajuda', já que afeta o lado direito do cérebro, onde são armazenadas as lembranças autobiográficas, e ajuda a refletir sobre eles e entendê-los desde outra perspectiva".

Surpreendente mesmo é esperar que uma comissão de pesquisadores de áreas como "ciência, psicologia e literatura inglesa" - e desde quando "ciência" é disciplina? - concluíssem o contrário: que os livros de auto-ajuda são mais "úteis" do que a alta literatura (uma extensão da alta-cultura). Trata-se, neste caso, de um tipo de pesquisa busca a validação, de forma incontéstil, da premissa inicialmente assumida. Obviamente, como a superiodade "semântica" da poesia sobre os livros de auto-ajuda já é um pressuposto básico da pesquisa, acaba existindo pouca margem de manobra para que uma conclusão em sentido contrário conhecesse a luz do dia.

Sem contar, claro, que a pesquisa britânica mediu o volume de atividade cerebral, mas não seu conteúdo: estímulos como "vou tacar fogo nesse livro", "putz, que cara chato!" ou ainda "como vou fazer para me livrar desse livro o mais rápido possível" podem muito bem ter animado as teias neuronais dos 30 voluntários, enquanto os cientistas atribuíam o feito às palavras incomuns ou às estruturas sintáticas complexas. Viés na análise, meu caro Watson!

Finalmente, a cereja do bolo: desde quando a poesia tem por obrigação ser "útil"? Esta conclusão, com certeza, deve ter feito Shakespeare, Wordsworth e T.S. Eliot darem três pulinhos de susto no caixão. Pois a utilidade da poesia é sua própria existência, meus camaradas. Tentar dar um sentido racional maior à uma atividade da ordem da fruição e do sensível é que, a meu ver, parece uma atividade neuronal totalmente inútil. 

Depois dessa, vou dormir! Mas não sem antes ler pelo menos duas quadrinhas do Manoel de Barros para aplacar a contrariedade das minhas teias neuronais...

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