UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Na boca do jacaré!

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Na boca do jacaré!

Alegria, alegria! A Lagoa da Pampulha, aquele pocinho artificial que aparece em vários cartões postais aqui da Roça Grande, figura mais uma vez nas manchetes do jornal Hoje em Dia online.

Desta vez, o foco da matéria não tem nada a ver com a Copa de 2014 (que eu e a metade dos brasileiros já entregamos pra Cristo), mas vem relacionada com outro evento de âmbito local: a comprovação da reprodução da espécie jacaré-de-papo-amarelo in loco por analistas ambientais do Ibama (http://www.hojeemdia.com.br/minas/jacare-ilustre-da-lagoa-da-pampulha-ja-e-pai-de-familia-1.337568).

Que um mergulho lado a lado com um jacaré-de-papo-amarelo, cujo comprimento médio é de 2m, intimidaria qualquer nadador olímpico, isto é fato consumado. Fazemos frequentemente uma ideia bastante ameaçadora do comportamento deste animal, e dos riscos que acreditamos que ele imponha aos seres humanos. O que nos levaria a crer que o bicho é uma ameaça aos transeuntes e pescadores de piabinha intoxicada da Lagoa da Pampulha.

Mas as aparências enganam! De acordo com o analista ambiental Daniel Vilela, responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama, "o perigo (...) é exatamente o contrário. Como vive em uma área povoada, os animais residentes na Pampulha correm risco constante de morrerem intoxicados ou de serem atropelados. Isso porque, à noite, a tendência é que eles procurem o asfalto, para aquecerem o corpo". Ou seja, tem muito jacaré-de-papo-amarelo morrendo atropelado no seu banho de lua noturno. E mais: "o Ibama não tem nenhum registro de ataques do animal a humanos em toda a história do órgão".

A inversão do ônus da ameaça, totalmente desmistificada pelos analistas ambientais, me fez pensar em outra situação que em nada remete ao habitat do jacaré-de-papo-amarelo. Trata-se, na verdade, de uma notícia relacionada à denúncia de agressões e de abandono de incapaz, feita à polícia militar, por uma garoto de 12 anos contra a sua própria mãe.

Exatamente como no idílio do jacaré-do-papo-amarelo, o caso em questão dá um nó no entendimento corrente de muitas pessoas. Há dois dias atrás - e como não poderia deixar de ser - a notícia veiculada na Folha online confere bastante crédito à versão da criança: "O garoto relatou que estava trancado com os irmãos - um de 2 anos e outro de cinco meses - e que não havia comida. Ele afirmou que era comum ficar trancado em casa, e disse ter sofrido maus-tratos da mãe, inclusive queimaduras por água quente" (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/970513-menino-liga-para-policia-apos-ser-deixado-em-casa-com-irmaos-ouca.shtml).

No entanto, em matéria veiculada hoje, o mesmo periódico traz à baila uma nova perspectiva dos fatos inicialmente apresentada, confrontando a versão do garoto com o relatório encaminhado ontem à tarde pelo Conselho Tutelar de Itapecerica da Serra (Grande SP) ao fórum da cidade. "No documento - que serve como auxílio ao juiz para decidir o tempo das crianças no abrigo -, os conselheiros disseram que as crianças não têm marcas de agressões e são bem cuidadas. Afirmaram, ainda, que a casa, de cinco cômodos, no Jardim das Oliveiras, é arrumada - eles a visitaram" (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/971637-conselho-tutelar-defende-mae-acusada-por-filho-em-sp.shtml).

A questão, desta vez, é bem menos simples de ser resolvida do que o da sobrevivência do jacaré em área urbana. No primeiro caso, a versão de um especialista na matéria bastou para dar um novo viés à ideia que se faz popularmente da presença de répteis deste porte. Já no segundo caso, existe um conflito entre autoridades envolvidas: conselho tutelar, polícia militar e juiz da Vara da Infância se revezam para jogar luz, cada qual a sua maneira, sobre a atitude da criança em questão.

Mas as diferenças não param por aí. Os personagens centrais de ambas as tramas tem possibilidades de intervenção bastante diversas na narrativa jornalística que é construída sobre eles: um jacaré não fala, mas a criança sim. E sua versão pode ser tanto enquadrada como uma denúncia legítima de abuso e maus-tratos, como pode também levantar um falso testemunho com impacto imediato nas relações familiares mais próximas. A visão do analista ambiental encerra uma discussão que nem sequer existiu. A confrontação do parecer do juiz, que determinou o recolhimento das crianças em um abrigo, pelo Conselho Tutelar local, abre a porta para mais perspectivas sobre o fato narrado.

Nesse pequeno jogo de aparências que vai sendo urdido no noticiário online - jogo a partir do qual emitimos nosso próprios julgamentos - a "verdade" sobre os fatos narrados é tão turva quanto a água da Lagoa da Pampulha. A despeito dessa qualidade, ela, a "verdade", vai sendo (re)construída pelas narrativas dos jornais, incessantemente, à luz de novos fatos e perspectivas. Já a água da Lagoa da Pampulha... bem, se depender da boa vontade dass nossas autoridades, ela deve ainda continuar turva de poluição pelos próximos anos.

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