UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Uai, são?

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Uai, são?

Não é de hoje que estudar temas controversos levando-se em conta clivagens de gênero virou moda nas ciências sociais. Digo "moda" porque nem tudo o que se faz nesta seara é digno de crédito, traz contribuições relevantes ou produz qualquer conhecimento emancipatório. E de boas intenções o inferno tá cheinho, cheinho!

Pois aqui vai um exemplo digno de troféu abacaxi nos meandros dos estudos de gênero. Matéria publicada no Globo Ciência de hoje replica estudo da Divisão de Ciências Sociais da Universidade da Califórnia, também publicado na Revista Psychonomic Bulletin & Review (http://oglobo.globo.com/ciencia/mat/2011/10/20/homens-sao-mais-engracados-do-que-mulheres-principalmente-para-outros-homens-925619085.asp#ixzz1bMw2YJJU). Passemos, pois, ao que diz o referido estudo.

Sob o sugestivo título "Homens são mais engraçados do que mulheres, principalmente para outros homens", a matéria do Globo Ciência faz o seguinte percurso argumentativo: ela começa explicitando as conclusões do estudo em questão, segundo as quais "os homens são mais engraçados do que as mulheres, mas a diferença é pequena, percebida principalmente por outros homens". Em seguida, encerra-se o primeiro parágrafo dizendo que são essas as conclusões do dito estudo para, no parágrafo seguinte, explicitar dos métodos de coleta de dados. Os seis paragráfos restantes são dedicados à discussão de alguns dos dados apresentados, alguns dos quais chegam a relativizar as próprias diferenças apontadas no título: que "os homens superaram as mulheres em apenas 0.11 ponto, num máximo de 5".

Para atacar esse angu de caroço, é necessário ir por partes. Em primeiro lugar, este estudo é uma resposta empírica ao artigo "Why women aren't funny?", publicado por Christopher Hitchens na revista Vanity Fair em 2007 - por sinal, ganhador do National Magazine Award daquele ano. A explicação de Hitchens para esta suposta diferença seria a necessidade "evolucionária" dos homens parecerem engraçados para atrair as mulheres (http://www.vanityfair.com/culture/features/2007/01/hitchens200701). A pesquisa tenta, portanto, dar um resposta empírica à provocação de Hitchens feita com base nas contribuições de autores como "Fran Lebowitz, Nora Ephron", além de um estudo recentemente publicado naquela época pela Stanford University School of Medicine.

Se levarmos tudo isto em conta, há que se considerar que o estudo da Universidade da Califórnia não pode oferecer, sob nenhum prisma, uma resposta com pretensões de universalidade às suposta diferenças percebidas no senso de humor de homens e mulheres. No limite, chego até a arriscar o palpite de que ele nem sequer pretendia isso. O que se quis foi dar uma comprovação de ordem empírica a uma afirmação (statement) que, naquele contexto preciso, foi percebida por uns como um "estereótipo" e por outros como "fato cientificamente comprovado". A pesquisa é, portanto, uma intervenção pontual em um debate circunscrito - e que merece ser contextualizado, sob pena do leitor incauto ser levado a crer que o estudo é mais ambicioso do que realmente era.

Em segundo lugar, um olhar menos crédulo sobre o método de aferição levantaria perguntas mais substantivas sobre a demonstratibilidade do que se quis provar. Ora, a matéria do Globo Ciência descreve o método de coleta de dados da seguinte forma: "Os pesquisadores usaram quadrinhos da revista 'The New Yorker' e pediram para os participantes do trabalho fazerem legendas. Divididos em dois grupos, 16 homens e o mesmo número de mulheres foram convidados a escrever sozinhos, em uma sala silenciosa, 20 legendas de desenhos tentando ser o mais engraçado que podiam."

Para início de conversa, a escolha dos instrumentos de coleta já diz bastante do contexto de "humor" que se quis pesquisar. Para quem não conhece, a revista The New Yorker fala para um público específico, culto, literato, e está muito longe de ser um humor de botequim da região da rodoviária. Além disso, quem garante que escrever legendas para tirinhas pré-existentes é o melhor indício de humor? Lembremos ainda que foi solicitado aos voluntários que estes escrevessem suas tiradas; mas qualquer um que vem da terra do repente e do côco de embolada poderia argumentar que existem formas mais sutis, improvisadas e orais de humor que estão deixando de ser aferidos. Enfim, o máximo que se pode dizer é que os homens foram mais felizes em um determinado tipo de suporte técnico - legendas para tirinhas - quando avaliados por pares.

E já que mencionei "avaliação por pares", vale aqui uma ressalva sobre as conclusões tiradas. A matéria do Globo Ciência começa a discussão dos dados e conclusões de pesquisa da seguinte maneira: "A descoberta fortalece o estereótipo de que os homens são mais engraçados e faz lembrar o artigo de Christopher Hitchens publicado em 2007 na revista 'Vanity Fair': 'Por que as mulheres não são engraçadas?' ".

Só que um dado apresentado logo mais à frente parece contradizer a existência mesma do estereótipo: "O mais interessante, de acordo com os pesquisadores, é que a pontuação masculina era um pouco maior quando o avaliador era outro homem. As mulheres deram apenas 0,06 de vantagem para os homens, enquanto os homens avaliadores deram 0,16 a mais para as legendas feitas por pessoas do mesmo sexo".

Ora, uma diferença de 0,06 em uma escala de 0 a 5 de vantagem para os homens (no caso das avaliadoras serem mulheres) é estatisticamente suficiente confirmar um "estereótipo"? O máximo que eu consigo apreender deste dado é que os homens se reconhecem mais no próprio estilo de humor do que as mulheres quando estas são avaliadas "por pares", nada mais. A prova disso é a opinião - por sinal, citada entre aspas - da principal autora do estudo: "Porém, a principal autora do estudo, Laura Mickes, afirmou que as diferenças entre homens e mulheres são tão pequenas que não podem reforçar esse estereótipo".

Levando este último dado e as demais ponderações em conta, não me resta a menor dúvida de que: 1) as conclusões do estudo devem ser lidas de acordo com seu contexto de interlocução, isto é, a presença do "estereótipo" sobre homens serem mais engraçados é uma posição culturalmente informada que vendo sustentada em um debate social específico; 2) o problema do "estereótipo" dos homens serem mais engraçados que as mulheres não parece, de forma alguma, ter sido plena e convincentemente demonstrado; 3) a matéria do Globo Ciência teria feito melhor se, ao invés de lançar bestamente a provocação do ar, tivesse trazido as duas questões anteriores para o debate.

Enfim... se estudos com clivagem de gênero viraram moda, este aqui é, realmente, o útimo grito da moda.

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