UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Velho Chico nas mãos de Derrida

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Velho Chico nas mãos de Derrida

No âmbito das frequentes reflexões que desenvolvo sobre o jornalismo cotidiano neste blog, o tema "títulos infelizes" bem que merecia uma sessão semanal especial! Material para reflexão é o que não falta: não passo um dia sequer sem ligar meu computador (isto é, quando ele resolve colaborar comigo) e coletar material suficiente para três teses de doutorado.

O problema é que, não raro, o título infeliz costuma vir acompanhado de imprecisões no texto, o que termina por desnortear o leitor incauto. Que pena! Nem todo mundo nasceu vacinado contra eventuais escorregadelas textuais ou tem imaginação bastante para advinhar o que o redator queria ter dito, mas não disse de jeito nenhum. Neste aspecto, o título da matéria do Hoje em Dia online publicada hoje sobre o Rio São Francisco me deu até uma fisgada na base da coluna: "Aos 510 anos, Rio São Francisco busca novo título" (http://www.hojeemdia.com.br/minas/aos-510-anos-rio-s-o-francisco-busca-novo-titulo-1.350151).

Logo mais adiante, no lead, vem a explicação para o estranho marco cronológico atribuído ao Velho Chico: "Quinhentos e dez anos depois de ser descrito pela primeira vez pelo português Américo Vespúcio, o Rio São Francisco não é mais o mesmo. Menos água, mais poluição, fruto de muito mais gente morando às suas margens".

Eis aqui uma verdadeira sucessão de frases infelizes! Para início de conversa, sugerir que o Velho Chico, um dos principais cursos d'água do hemisfério sul, esteja atualmente nos seus 510 anos, é mais do que simplório: é dar à narrativa de Américo Vespúcio o dom da criação divina. Mas é claro que não foi a narrativa que criou o rio: aliás, ele pôde passar milhares de anos sem ela, tranquilo e pacífico, saindo das Gerais até desembocar lá em cima, entre Sergipe e Alagoas. Pior, ao dizer que o "Rio São Francisco busca novo título", o narrador cria, no leitor, a falsa expectativa de que este título será em algum momento explicitado no corpo da matéria. Mas como ele não é, a gente tem que usar a imaginação: "será que o Velho Chico está querendo deixar de ter 510 anos?" Desculpe, mas a omissão da informação dá margem para todo tipo de prospecção idiota e esta é apenas uma delas.

Tem um texto muito engraçadinho do Jacques Derrida ("Declarations of Independence", disponível nos melhores arquivos pdf da Internet) em que ele desdenha da tarefa que lhe foi imputada: falar da assinatura da Declaração de Independência na ocasião do seu bicentenário nos Estados Unidos. Derrida tripudia da tarefa, dizendo: "But as I'd rather not simply remain silent about what I should have spoken about to you, I will say a word about it in the form of an excuse. I will speak to you, then, a little about what I won't speak about and about what I should have wanted - because I ought - to have spoken about" (traduzindo, seria mais ou menos assim: "Como eu não poderia ficar em silêncio sobre o que eu deveria ter dito a vocês, falarei sobre isto sob a forma de uma desculpa. Falarei então um pouco mais sobre o que eu não falarei, mas deveria ter querido falar - porque é meu dever").

Tanta firula porque pediram para que ele, Derrida, fizesse uma análise textual da própria Declaração de Independência dos EUA. É claro que ele não fez. O que ele fez, em contrapartida, foi questionar quem é o verdadeiro signatário deste ato declarativo que acabou fundando uma instituição, isto é, aquele estado-nação particular. No fundo, o célebre autor aproveita a deixa para tripudiar da ideia de que os 56 signatários da Declaração sejam representantes legítimos do "povo americano" ou da "vontade de Deus" : afinal, quem lhes deu "autoridade" para assinar em nome do povo ou de Deus, se o país ainda nem sequer existia juridicamente?

Guardadas as devidas proporções, a matéria sobre o Velho Chico vai além do ato fundatório analisado por Derrida para colocar Américo Vespúcio numa cilada narrativa: ter "criado" um rio em 1.501 só porque conseguiu navegar até a sua foz. Sinceramente, não sei como Derrida resolveria este embroglio. Mas suspeito que já que a Declaração de Independência dos EUA contou com o apoio da vontade de Deus, é bem provável que São Francisco de Assis lhe dê uma mãozinha aqui.

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