UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Hábitos e monges

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Hábitos e monges

A novela é antiga: pesquisa científica conclui "X", matéria jornalística diz "Y". E nós é acabamos levando gato por lebre.

Estudos experimentais desenvolvidos por um grupo de pesquisadores da Northwestern University, em Illinois (EUA), concluíram que "a forma como interpretamos o valor simbólico da vestimenta pode afetar nossos processos cognitivos" (http://oglobo.globo.com/saude/sim-habito-faz-monge-mostra-pequisa-4488046#ixzz1r8N3WeH9).

Bem, dizer que algo "afeta nossos processos cognitivos" é vago, pois não diz muito da relevância fenômeno já que, virtualmente falando, tudo pode "afetar" nossos processo cognitivos. Mas a questão nem é essa. Resumir experimentos de psicologia comportamental em duas ou três maltraçadas linhas - principalmente quando se trata de apresentar uma área de estudos em expansão, como esta denominada "cognição incorporada" - não poderia mesmo acabar bem.

Não que o princípio teórico não fosse atraente: Adam Galinsky, líder do grupo de pesquisa responsável pelos experimentos, lembra que "pensamos não apenas com nossos cérebros, mas com nossos corpos, e nossos processos de pensamento estão baseados em experiências físicas que provocam conceitos associados abstratos". Ótimo! Quem já leu "A Aula" de Roland Barthes, já tem uma vaga noção do que significa "aprender" com o corpo. E na mesma senda, seguem inúmeros autores, dos reichianos aos biodançarinos, passando pelos yogues e praticantes de meditação ativa. Ou seja, a posição teórica é velha, o que não altera em nada seu valor. No máximo, que a ciência ocidental está revendo alguns dos seus pressupostos básicos, com os quais o Oriente já lida há milênios.

Porém, o bolo desanda justamente quando se pensa em "operacionalizar" esta postura teórica em experimentos de laboratório: "Os pesquisadores, liderados por Adam Galinsky, realizaram três experiências usando jalecos brancos idênticos de médicos e pintores. Em todos os casos, as pessoas que vestiram as peças que seriam dos profissionais de saúde — a quem costuma ser atribuído um comportamento cuidadoso, rigoroso e atento — apresentaram melhores resultados em testes de atenção e percepção visual de erros".

Colocado desta forma, as conclusões ficam, no mínimo, risíveis. Difícil imaginar que o resultado seria o mesmo no Brasil, caso o estudo fosse replicado por essas bandas. É claro que os pesquisadores devem estar cansados de saber que o "significado social de médico" é absolutamente contextual (isto é, varia de grupo social para grupo social). Aliás, admitir que as qualidades atribuídas aos médicos variam substancialmente de contexto para contexto em nada invalida o achado da pesquisa: que "vestimos" as qualidades que percebemos na roupa.

Mas daí a afirmar que "o antigo ditado que nos orienta sobre não julgar as pessoas pela aparência acaba de ser contrariado por um estudo americano, pelo menos no que diz repeito às roupas" é querer forçar um pouco a barra. E a razão é simples: "aparência" não diz respeito somente ao porte de roupa, mas a um conjunto complexo que inclui desde de características fenotípicos (cor e textura do cabelo, da pele, altura, peso, etc) até inscrições e inserções no corpo (piercings, tatuagens, próteses) ao qual a antropologia confere o pomposo nome de "etnicidade". Portanto, reduzir a "cognição incorporada" à apreensão de um único elemento - no caso, a roupa - parece um erro metodológico dos mais graves.

Enfim, fica dúvida se o experimento é realmente besta ou se a "ópera" é que foi mal-resumida pelo jornalista. Mas, como é tarde e a dúvida persiste, decidi entregá-la aos braços de Morfeu para que ele faça bom uso dela.

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