UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Com teto e sem teto, com aspas e sem aspas

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Com teto e sem teto, com aspas e sem aspas

Estava aqui pensando em como a língua portuguesa, com toda a sua beleza, acaba criando verdadeiras armadilhas para o entendimento das massas. Quando li, esta tarde, notícia da Folha Online comentando a decisão do juiz do Tribunal Regional Federal, Olindo Menezes, a qual liberava os salários dos funcionários do Senado acima do teto de R$ 26,7 mil (http://www1.folha.uol.com.br/poder/963636-tribunal-aceita-recurso-do-senado-e-libera-salario-acima-do-teto.shtml), pensei: "Coitadinhos dos senadores. O salário deles aumentou tanto que acabou furando o teto". De onde tirei a conclusão, totalmente equivocada, de que os senadores seriam agora autênticos sem-teto.

A matéria, confesso, deixou margem para tanto equívoco. A meu ver, a jornalista Nádia Guerlenda foi, no mínimo, econômica nas aspas ao comentar a reação de Menezes à liminar concedida em junho deste ano pelo juiz Alaôr Piacini (já que esta última estipulava que as comissões, gratificações e horas extras dos funcionários do Senado não ultrapassassem o teto de R26,7 mil): "De acordo com Menezes, a liminar poderia lesar a 'ordem pública' porque, feito de forma abrupta, o corte nos salários poderia inviabilizar o funcionamento dos serviços públicos do Senado".

"E daí?", pergunta o leitor atento. Ora, ora, ora. É que as aspas - aquelas duas amigas inseparáveis que aparecem no início e no final de uma citação - servem para assinalar uma mudança de tom, isto é, a passagem do discurso próprio para um discurso citado. Sem elas, citador e citado ficam parecendo comadres de longa data: um se sente no direito de representar o que outro disse pelas próprias palavras. E o que é pior: sugere conivência.

Mas aí, o leitor atento - aquele mesmo que fez a objeção no início do parágrafo anterior - vira para mim e diz: mas o termo "ordem pública" aparece entre aspas. É verdade, mas a objeção só confirma a importância do uso das aspas, mesmo se com outra função: a de indicar ressalva. É que elas (as aspas) também podem servir para identificar a presença de um estranho no ninho: é por isso que aparecem entre aspas termos que remetem a estrangeirismos, neologismos, regionalismo ou, ainda, usos polêmicos ou próprios de determinados jargões profissionais.

E como "ordem pública" reúne preenche várias das condições anteriores - por ser considerado por muitos ali termo alienígena ao dia-a-dia de trabalho do Senado, desconhecido por alguns, inexistente na realidade de outros, além de altamente polêmico - seu uso só confima a regra. Portanto, ao ler o texto da Folha, fui quase levada a acreditar que a real preocupação do juiz Olindo Menezes era realmente a manutenção da "ordem pública" do país ao qual servem os funcionários do Senado.

Foi também graças à economia das aspas que quase me compadeci da sorte dos funcionários daquela Casa, ao acreditar que a continuidade de seus serviços pudesse estar sendo admoestada pela "restritiva" quantia de R$26,7 mil. Com uma particularidade: faço aqui uso deliberado das aspas como indicativo de ironia, pois o termo "restritivo" diz o oposto do que pretendo.

Pois é... Para você ver como esse mundão sem porteiras é atravessado por paradoxos incompreensíveis para pessoas comuns como eu e você: enquanto os funcionários do Senado querem que seus supersalários cresçam até furar o teto, os aposentados e pensionistas do INSS estão suando a camisa para saber se seu próximo vencimento virá corrigido pelo teto (http://www1.folha.uol.com.br/mercado/963385-aposentados-podem-confirmar-se-irao-receber-revisao-pelo-teto.shtml).

Ao que parece, quando se trata de benefício de pensionista e aposentado, a banda toca outra música: "Inicialmente, o INSS divulgou que 117.135 aposentados, com benefício concedido entre 5 de abril de 1991 e 31 de dezembro de 2003, receberiam o aumento em setembro. O número, no entanto, mudou para 107.352, cerca de 10 mil a menos do que havia sido divulgado inicialmente". Além de um número menor de beneficiados com a revisão, o valor corrigido também será inferior ao inicialmente anunciado: "O reajuste médio no país será de R$ 175 por benefício. Antes, o INSS havia divulgado que seria de R$ 240".

Neste último caso, não se fala sequer em abalo da "ordem pública", já que os pensionistas e aposentados do INSS, contrariamente aos funcionários do Senado, não vão ficar sem teto. Alegrai-vos, pois, aposentados do meu Brasil: com esse teto, do que é que estão reclamando?

Com teto e sem teto, com aspas e sem aspas... No final das contas, a culpa deve ser mesmo da Flor do Lácio, que vive me dando umas rasteiras.

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