UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Nuvens radioativas, calamidades públicas

quinta-feira, 17 de março de 2011

Nuvens radioativas, calamidades públicas

É estranho como, em tempos de calamidades públicas, esquecemos das calamidades privadas com uma facilidade impressionante! A falta de acesso aos livros ou a falta de hábitos de leitura, por exemplo, é uma dessas calamidades ordinárias que já não assusta quase ninguém. Agora, quando o quesito é "calamidade pública", a coisa muda rápido de figura. É que esse tipo de calamidade tem a propriedade de manter as pessoas num estado de patente sobrecarga emocional, superdimensionando os riscos enfrentados (ou simplesmente imaginados) e, consequentemente, os gestos para evitá-los.

Um efeito nefasto disso tudo é que fica ainda mais aguçada a capacidade das pessoas de anteciparem sofrimentos que, talvez, jamais venham a existir: li no site do Hoje em Dia, não sem alguma consternação, que o vazamento de radiação em Fukushima, no Japão, já havia começado a levar os franceses até as farmácias mais próximas. O objetivo é compor um aprivisionamento de pastilhas de iodo, "substância que impede que a radioatividade tenha efeitos sobre a tiroide (sic)"(http://www.hojeemdia.com.br/cmlink/hoje-em-dia/noticias/mundo/nuvem-radioativa-chegara-a-europa-semana-que-vem-1.253886). O prenúncio de uma nuvem radiotiva, liberada com explosão de reatores no Japão, e da consequente possibilidade de contaminação, acabou antecipando o seu próprio efeito: todos ficaram "contaminados" com a ideia de que a morte está próxima.

O problema é que, a rigor, a morte sempre esteve próxima! Afinal, como diz o ditado: "para morrer, basta estar vivo!". O que mudou, no entanto, foi a constatação da perenidade da vida, que, via de regra, só é feita na presença de eventos disruptivos e trágicos como as "calamidades públicas". É como se, sem elas, ninguém fosse morrer de jeito nenhum - o que é uma grande mentira.

Fato é que morremos sempre, um pouquinho a cada dia, quando vivemos pequenas calamidades privadas. A falta de leitura e de condições para gozar de suas benécias é uma dessas calamidades que atacam na surdina, matando as posibilidades de um futuro mais digno. Cito aqui a polêmica criada por escritores negros dos Estados Unidos em torno dos avanços dos livros eletrônicos. Esses autores temem, com muita propriedade, que a migração dos hábitos de leitura do livro impresso para o livro eletrônico acabe aumentando desigualdades estruturais de albetização entre brancos e negros (http://www1.folha.uol.com.br/tec/890052-mudancas-tecnologicas-podem-criar-desigualdade-na-leitura.shtml). É a escritora Marita Golden quem denuncia: "Caso a leitura venha a depender de tecnologia que precisa ser comprada, creio que a desigualdade na alfabetização persistirá e até mesmo crescerá". Aliás, o que vale para a realidade de lá, vale para a daqui também, só que num grau mais elevado: as taxas de analfabetismo dos negros no Brasil continuam sendo mais do que o dobro da dos brancos (http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,analfabetismo-entre-negros-e-mais-do-dobro-que-entre-brancos,611316,0.htm).

Claro, essa "pequena" calamidade privada costuma passar despercebida por muitos, principalmente por aqueles que acham que não sofrem diretamente com ela. O grande problema é que essa é uma calamidade privada com dividendos públicos indiscutíveis. Aqui, todos morrem, sem exceção.

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