UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Boatos e imagens

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Boatos e imagens

Quanto mais velozes os meios de comunicação e mais sofisticada a parafernália multimídia que acompanha as redes sociais, mais difícil fica de discernir um reles boato de uma "verdade" verdadeira. Geralmente, o que se obtém depois de muita apuração é uma meia-verdade com fortes indícios de falsidade. Ou, na melhor das hipóteses, uma mentira deslavada com ares de verossimilhança.

Desde domingo passado, já estava circulando - e sendo amplamente compartilhada - na rede social Facebook a foto de uma criança indígena. A foto em questão era meramente ilustrativa e servia de pano de fundo para uma denúncia de alta gravidade: a de que uma criança indígena de oito anos da etnia awá-guajá teria sido queimada viva por madeireiros.

Pois hoje, em matéria publicada na Folha.com, a Fundação Nacional do Índio veio a público tentar desmentir a informação: "A Funai (Fundação Nacional do Índio) afirma que a denúncia de que uma criança indígena da etnia awá-guajá foi queimada por madeireiros no Maranhão é infundada, e que as histórias sobre o suposto crime não passam de boatos" (http://www1.folha.uol.com.br/poder/1032340-denuncia-de-crianca-queimada-no-ma-e-boato-diz-funai.shtml).

"A conclusão foi divulgada num relatório elaborado pela fundação, que deslocou no último fim de semana uma equipe de três servidores para a terra indígena Arariboia, no município de Arame (350 km de São Luís), local onde teria ocorrido o crime", prossegue a matéria.

Tal como uma história policial, em que a cena do crime vai sendo reconstituída por meio de depoimentos de testemunhas e de suspeitos, a matéria chega ao início provável da boataria: "A denúncia de que uma criança da etnia awá-guajá foi queimada por madeireiros começou a aparecer em blogs de notícias do Maranhão na semana passada. Poucas horas depois já começava a ganhar espaço em redes sociais", explica a matéria.

Para incrementar o boato, os participantes da reconstituição trazem, cada qual a sua maneira, uma versão muito própria dos fatos. Os próprios textos que circulavam na Internet trariam, em princípio, algumas informações desencontradas sobre o assassinato da criança: "Alguns dos textos afirmavam que o crime tinha ocorrido uma semana antes. Outros, de que havia acontecido em setembro ou outubro de 2011. E todos afirmavam que madeireiros atearam fogo na criança após atacarem os awá-guajá. Depois disso, os índios não teriam sido mais vistos".

No entanto, a versão da FUNAI sobre os awá-guajá é outra. De acordo com o texto da Folha, a equipe da FUNAI teria conversado com o índio guajajara Luís Carlos Tenetehara - que é citado nos textos de denúncia que circulam na Internet como sendo o autor da descoberta do corpo da criança - e tirado a limpo a história. "De acordo com a fundação, o índio disse que a história não é verdadeira e que os índios awá-guajá, que vivem isolados, não deixaram de ser vistos pelos guajajaras, com quem dividem a mesma terra, após o suposto ataque por madeireiros".

Por outro lado, a matéria afirma que o Conselho Inidigenista Missionário (CIMI) teria dito, por sua vez, "que índios afirmaram que o suposto crime foi denunciado há meses para a Funai". O que a FUNAI nega de pé juntos, dizendo "que informações sobre o caso só chegaram ao seu conhecimento na semana passada, e que ineditamente começou a investigar a denúncia".

Boato por boato, a matéria da Folha não ajudou muito, e acabamos ficando com a versão do que um disse sobre aquilo que o outro disse ter tido. Na dúvida, caro leitor, trocamos o incerto pelo ausente: continuamos sem foto do corpo da criança carbonizada; sem nenhuma citação direta da explicação do guajajara Luís Carlos Tenetehara, cujo nome vem sendo citado como "testemunha ocular" da tragédia; a acusação do CIMI morre na praia, com autoria desconhecida e sem direito nem sequer a aspas; e os awá-guajá continuam lá, isolados no canto deles. E aí, eu pergunto: alguém ganhou alguma coisa com isso? No máximo, ganharão os madeireiros, que poderão posar de vítimas, atacados em sua honra por toda essa boataria infame e infundada.

Pois se o problema aqui, nesse caso, era ausência de algum indício imagético e sonoro que confira alguma veracidade aos fatos, o Hoje em Dia online resolveu o problema rapidinho. O jornal resolveu divulgar um evento bizarro que tinha tudo para ser boato, mas que acabou levando a melhor por trazer ao menos uma foto do "cadáver".

Segundo matéria publicada hoje naquele jornal, uma rede de TV tailandesa país teria transmitido uma cerimônia budista de casamento em que "o tailandês Chadil Deffy buscou unir sua alma pela eternidade com sua namorada, Ann" (http://www.hojeemdia.com.br/noticias/tailandes-casa-com-o-cadaver-de-namorada-morta-em-acidente-1.391610). Só que a cerimônia contava com um detalhe mórbido adicional: a noiva já estaria supostamente morta há quatro dias, vítima de um acidente de trânsito.

Contrariamente ao boato da criança indígena carbonizada, que é totalmente desprovido de registro imagético, a noiva morta acabou ganhando outro tipo de destaque na mídia: "As imagens do casamento foram transmitidas pela televisão tailandesa, enquanto quase 30 mil pessoas as viram e comentaram através da página pessoal de Chadil", afirma a matéria. "As fotos mostram a jovem na cama do hospital e depois vestida de noiva durante o casamento, enquanto Chadil colocava o anel em seu dedo e a beijava na mão e na testa", prossegue.

Veja bem, as condições para que tudo não passe de boato continuam sendo praticamente as mesmas: ambos os eventos se passaram em recanto longínquo. Neste último caso, contudo, a matéria exibe uma única foto, em que o noivo posa ao lado de um corpo aparentemente de mulher, vestido de branco, e segura sua mão. Para piorar a situação, onde aparecem os créditos da foto, lê-se "Facebook/Divulgação". Além disso, a razão que levaria a tv tailandesa a transmitir um evento deste porte não é mencionada em nenhuma passagem da matéria - e nem sequer o nome da rede que teria retrato um evento de tal monta.

Pouco importa: boatos precisam mesmo é de imagens verossímeis, mesmo se não forem verdadeiras, nem de fontes confiáveis e, de preferência, recheadas de citações indiretas de difícil comprovação. Quem tem olhos de ver, veja. Quem tem ouvidos de ouvir, ouça. E quem tiver forte propensão ao boato, que passe o fato adiante.

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