Há várias formas de se confrontar com um evento trágico: alguns reagem com ajuda desinteressada, outros tentando tirar proveito daquela situação em benefício próprio. Mas há quem acabe fazendo os dois, mesmo que de maneira não-intencional.
A história do montanhista Bernardo Collares, que havia sofrido um acidente na Patagônia argentina ao escalar o Monte Fitz Roy em 03 de janeiro de 2011, é um excelente exemplo para se pensar o que pode mobilizar a empatia das pessoas em situações extremas (http://oglobo.globo.com/rio/apos-um-ano-familia-tem-esperanca-de-encontrar-montanhista-3565381).
Há um ano atrás, Collares caiu ao descer o Fitz Roy, tendo possivelmente fraturado a bacia. Na época, Collares havia sido colocado sob um platô por sua companheira de escalada, Kika Bradford, que acabou terminando a descida sozinha em busca de ajuda. No entanto, as más condições climáticas daquela época impediram que as buscas continuassem e que o socorro chegasse até ele. O resultado foi a morte presumida de um corpo ausente.
Segundo a advogada da família Collares, Nancy Walts, meses depois da tragédia, a família da vítima ainda buscava meios de fotografar o corpo, já que "as fotos seriam necessárias para que a família pudesse entrar com um pedido de óbito por morte presumida", conforme explica a matéria publicada no O Globo de hoje.
Ainda segundo a advogada, "no carnaval do ano passado, um grupo de montanhistas italianos procurou os Collares e se ofereceu para localizar e fotografar o corpo de Bernardo no platô, que deveria estar sem neve". Até aí tudo bem. O problema é que o grupo pediu 6 mil euros para fotografar o corpo, montante este que não foi pago pela família. O grupo seguiu caminho e tempos depois enviou à família fotos do local do acidente: "No platô onde Bernardo estaria, apenas vestígios de um acampamento foram encontrados. Isso aumentou ainda mais a angústia da família e também a ansiedade pela chegada do verão".
Enquanto outra expedição de montanhista e a própria polícia argentina se preparam para visitar o local do acidente, fica no ar uma última esperança, senão de encontrá-lo vivo (possibilidade muito remota, dadas as condições de sobrevivência no local), pelo menos de localizar e repatriar o corpo para uma autópsia.
Fico pensando na atitude do grupo de italianos que pediu 6 mil euros para fotografar o corpo. Por um lado, a matéria do O Globo dá a entender que eles realizariam a expedição de qualquer forma, independentemente do pagamento pelas fotos (o que, de fato, parece ter acontecido). No entanto, e mesmo assim, eles não se furtaram à ideia de tirar proveito da aflição dos familiares da vítima em seu próprio benefício. Por outro lado, foram as fotos realizadas pelo grupo e enviadas posteriormente à família que denotaram a ausência do corpo no local designado, reacendendo uma última centelha de esperança.
Uma coisa, no entanto, me parece certa: morte sem corpo para ser velado é mais ou menos como festa de aniversário sem a presença do aniversariante: falta "algo" fundamental, isto é, a razão central do evento. Mas sabemos que a comparação já é em si insuficiente: no caso do aniversariante ausente, pode-se esperar que ele esteja presente no aniversário seguinte. Já o velório... só pode acontecer uma vez e de maneira definitiva.
A família da vítima, só resta desejar que qualquer que seja o evento a ser celebrado, que ele seja ao menos de corpo presente.
A autora criou esse blog para divagar sobre o que lê diariamente nos jornais, com foco principalmente (mas não exclusivamente) na cobertura diária de ciência. Suas principais armas são a ironia de inspiração machadiana e um computador bacaninha (ela tirou o escorpião do bolso e comprou um de verdade). Ao citar alguma passagem, por favor, dê créditos para a autora: até para as grandes bobagens o direito autoral é inalienável.
quarta-feira, 4 de janeiro de 2012
Degelo
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