UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Boletim de ocorrência

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Boletim de ocorrência

A história do ET Bilu ontem me deixou com a pulga atrás da orelha. Afinal, o que é ser um ET nesse mundão sem porteira? Depois do dia de hoje, estou certa de ter vivido uma experiência extraterrena.

Passemos, pois, aos fatos. Emprego em vista, carteira de trabalho desaparecida. Olho no site do Ministério do Trabalho e descubro que é necessário registrar boletim de ocorrência (vulgo BO) para obter uma 2a via. E lá vou eu bater no quartel da PM em Santa Efigênia para fazer o tal BO. "Não, aqui não fazemos mais isso. Vc tem que ir até uma delegacia da polícia civil". Ok, sei de uma que fica na Floresta. Fui para lá num pé só.

Cheguei à delegacia às 11h06. Quatro pessoas aguardavam atendimento antes de mim. Uma delas desistiu, o resto ficou esperando. Na porta da delegacia, aviso de greve e pedido de respeito à categoria. Opa, mais gente chegando. Funcionários entram e saem, sem muita pressa. Aliás, sem pressa nenhuma. "Aguarde mais um pouco, por favor". Na fila, antes de mim, dois rapazes e um senhor. Depois de mim, duas moças e um itinerante que estava alojado no Serviço de Acolhimento Institucional para a População de Rua e Migrante, que fica ao lado. E dá-lhe espera.

Esperar por atendimento das autoridades públicas - sem ter o que ler nas mãos - faz com que os longos momentos de espera sejam devotados quase exclusivamente à observação e à reflexão.

Continuando... O primeiro atendimento para registro de boletim de ocorrência do dia sai às 11h38 - após 45 minutos de espera, segundo o senhor sentado ao meu lado. Suspiro profundo. Uma funcionária atende o telefone e repassa ligações para outros ramais. Dois delegados (um homem e uma mulher) chegam, como sempre, sem pressa. Um deles atende o telefone na recepção, a outra recusa um telefonema e diz para repassar para a imprensa. Conversa em meia voz entre dois outros funcionários do baixo clero. "É verdade que o Dr. Fulano morreu?" A outra responde apontando para uma notícia de um jornal popular, aberto sobre o balcão. "Morreu depois que viu isso aí".

E a espera continua... O segundo atendimento do dia sai às 11h51, o terceiro às 12h05 e o meu às 12h30. Um senhor chega para registrar BO contra uma empresa que se nega a lhe dar uma carta de apresentação. Ele explica que tem uma ação trabalhista contra a empresa e que precisaria de um BO para processá-la por danos morais. Segundo ele, já havia perdido um emprego por falta da tal de carta de apresentação. Desce um funcionário e explica que deixar de dar uma carta de apresentação não é crime. Outro funcionário entra no meio da conversa e pergunta como é que ele vai provar que não está sendo contratado pela outra firma por falta de carta de apresentação. O homem liga para a advogada. A outra moça que vai ser atendida depois de mim é também advogada e diz que ele não tem como provar. O homem esbraveja e vai embora. A espera prossegue.

Agora chega o itinerante e pergunta para as damas se queremos água, pois ele iria buscar no serviço de atendimento ao migrante ao lado. Promete, inclusive, trazer água em copo limpo. A moça ao lado, que é negra, magra, alta e de cabelos pintados de louro, pergunta se pode acompanhá-lo e sai para buscar água. A advogada do meu lado ri: "é cada um que aparece". "Pelo menos ele foi educado", respondo. Coisa rara hoje em dia. Eles voltam para a sala de espera, copo d'água na mão, mais três pacotes de pão de forma fechadinhos e uma embalagem tetrapak que parecia de maionese ou algo do gênero.

Aí, o moço começa a falar que a fé é um grão de mostarda que cabe na palma da mão. "Vc quer que eu coloque a fé na palma da sua mão, moça?". A advogada ri: "não obrigada, já tenho a minha". "E você, moça?" - a moça agora era eu. "Não, obrigada. Também já tenho a minha". E aí ele fala que precisa de registrar o BO para ganhar uma passagem de volta para Manaus, que já morou em Brasília, que o sistema de lá péssimo, que os restos que os porcos de lá comem é da melhor qualidade.

"Como é que as pessoas podem jogar uma coisa dessas fora?", pergunta o itinerante brandindo os três pacotes de pão-de-forma no ar. "Conta para eles onde foi que eu achei isso", diz ele cutucando a moça que foi com ele buscar água. Ela diz: "ele achou no lixo, mas aposto que foi ele quem colocou isso lá". Os dois então começam a divergir sobre quem colocou os três pacotes de pão de forma no lixo. "Tudo o que está aí fora é o sistema", reclama o itinerante. "Ah, você quer ver o que eu faço com o sistema?" Ele levanta e joga os três pacotes de pão-de-forma lá fora, no meio da calçada. Bom dia, miséria humana! "Deixa aí que uma hora uma mãe de família com filho para criar passa e pega", diz ele. A moça da água responde: "Eu mesma sou uma que pegaria um pacote desses na hora!" É a miséria humana mandando abraços para todo mundo.

A porta abre e alguém recita a palavra mágica: "próximo!". Sou eu, graças a Deus. Dou bom dia sorridente e em retribuição recebo uma espécie de grunhido. Sento de frente para o funcionário, que tem o jornal popular aberto ao lado do computador. "Queria registrar uma ocorrência por perda da carteira de trabalho para poder tirar a 2a via". "Carteira de identidade, por favor". Tlec, tlec, tlec no computador e "enter". Uma olhinha no jornal aberto ao lado do computador. Outro tlec, tlec, tlec. Mais uma olhadinha no jornal. O documento é impresso, mas a notícia parece mais interessante. Olho para o azul do céu pela janela. Respiro fundo, beeeeem fundo. Eita, a leitura tá ótima, ele nem olha para a tela! Mais um tlec, tlec e "enter" de novo. O funcionário se levanta calmamente - todo mundo nesse lugar é calmo! - busca os papéis que já estavam impressos e me entrega. Tá tudo certo. Posso ir embora. São 12h45. Os boletins de ocorrência são emitidos até às 13h, segundo o funcionário que estava na recepção.

Cenas como essas me fizeram hoje refletir no pleno sentido do termo cidadania. Também fiquei matutando sobre como somos vulneráveis diante do poder, da autoridade. Como diz o Zeca Pagodinho, tem gente "que tem bala na agulha" e pode contar com corredores de prestígio para chegar até o poder público. Não era o caso de ninguém ali. O serviço público para o cidadão comum é assim: sem pressa, sem cortesia, com doses massacrantes de realidade nua ne crua. Mas ele tem algo de realismo fantástico também: quem vê não acredita! E assim termina o relato da passagem pela delegacia de polícia civil nessa manhã de 5a feira.

Ah, antes que alguém venha com aquele velho discurso requentado de que "isso aí não acontece em país de primeiro mundo", deixa eu abrir um breve parênteses para ilustrar o tema com um fato ocorrido comigo em Montreal, no Canadá, em dezembro de 2008. Era 2a feira à noite, quando saí para tomar café com um amigo de um antigo emprego. Tirei minha carteira da bolsa e paguei meu pedido no caixa. Fui para a mesa. Meu amigo foi buscar guardanapo. Esperei ele virar de frente para a mesa para então me levantar e ir ao banheiro feminino. Voltei e conversamos por pelo menos mais uma hora e meia. Na hora de me vestir para sair (estávamos em pleno inverno), notei que minha bolsa estava leve. Surpresa: a carteira com todos os documentos tinham sido roubados. Informei o funcionário caixa sobre o roubo e pedi para procurarem melhor na hora da faxina. Ele disse que tinah circuito interno de TV na café mas que seria necessário um BO para obter o CD com as imagens.

Corri para casa, liguei para o banco, cancelei o cartão de crédito e de débito. Na manhã do dia seguinte, corri para a delegacia registrar queixa. Fui pessimamente mal-recebida por uma policial que, muito grosseiramente, além de me fazer esperar horrores, disse que os pliciais não iriam asssitir às imagens e que caberia aos funcionários do café de localizarem o ponto exato em que o ladrão é flagrado roubando minha carteira.

Os dias que se seguiram foram bastante semelhantes a um frustrante jogo de tênis: ora a bola saía da polícia, se recusava a pedir as imagens para o café, ora a bola voltava, e o café se recusava a me fornecer as imagens. Por fim, o funcionário do café disse que o patrão viu as imagens e ninguém sequer se aproximou de mim naquela noite. Conclusão: minha carteira foi abduzida! Só pode!

Que isto então sirva de lição para todos nós: sistema é sistema, autoridade é autoridade e nós, reles cidadãos, somos grãos de mostarda (que nem a fé no itinerante) no meio disso tudo. Que seja aqui, em Montreal ou em Bangladesh.

No fim das contas, fico pensando se quem não está errada nisso tudo sou eu, que nasci no planeta errado. ET Bilu, casca fora: o ET aqui sou eu!!!

Nenhum comentário:

Postar um comentário