UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Meias verdades e o óbvio ululante

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Meias verdades e o óbvio ululante

Não existe nada de mal em constatar o óbvio ululante. Afinal, o óbvio só veio a se tornar óbvio porque ele precisou ser reafirmado e reconhecido muitas vezes. O que não dá mesmo é contemplar o óbvio para sorrateiramente escorregar para as meias verdades. O problema, meus amigos, é que as meias verdades nunca andam sozinhas: elas precisam se apoiar ora numa mentira, ora numa omissão.

A matéria veiculada hoje no O Globo online é tipicamente uma daquelas que parte do óbvio para chegar a algumas meias-verdades. Intitulada "Excesso de trabalho pode causar danos psíquicos, profissionais e físicos", a matéria parte de uma obviedade que muitos estão carecas de saber, mesmo que não apliquem em seu cotidiano: trabalhar demais pode ser contrapodutivo (http://oglobo.globo.com/economia/boachance/mat/2011/07/21/excesso-de-trabalho-pode-causar-danos-psiquicos-profissionais-fisicos-924956453.asp).

A matéria começa descrevendo a síndrome de "burnout": "A enfermidade atinge os chamados workaholics, isto é, viciados no trabalho, e atua em três fases distintas: primeiro a ansiedade, depois a angústia e, finalmente, a depressão. Os sintomas costumam surgir devido ao excesso de horas no trabalho, que diminui o tempo para a vida social".

Bem, tudo teria ficado no elas por elas, se uma meia-verdade não viesse se esgueirar entre os sintomas e se instalar ao lado da obviedade: a constatação de que pessoas "workaholics" são as principais vítimas dessa síndrome é uma meia-verdade perigosa, pois ela confunde causa e efeito do comportamento compulsivo dirigido para o trabalho.

O problema, mais uma vez, é que uma meia-verdade ainda é uma meia-verdade, e ela não vai se tornar uma obviedade apenas porque resolveu se sentar ao lado dessa última. Ou seja, as pessoas que apresentam um alto teor de "dedicação à profissão" - para usar os termos da matéria - são realmente mais propensas à estafa (50% de verdade), mas elas o são por opção pessoal ou por pressão direta dos seus superiores, no intuito de manter um padrão alto e constante de produtividade?

Errou quem pensou que estas perguntas básicas ficariam sem resposta na matéria. Sim, ela é respondida, só que a resposta vem a conta-gotas para demarcar um posicionamento que me parece para lá de preocupante. Vejamos como isto acontece.

A matéria cita, primeiramente, a psicóloga Silvana Brígido para estabelecer uma distinção importante com relação à adesão do indivíduo à carga de trabalho: "A síndrome de burnout é diferente do estresse, em que uma pessoa está num emprego que não necessariamente gosta. No caso do burnout, é justamente o problema de o indivíduo ficar tão concentrado no trabalho que o prejudica".

E como ficam as organizações nisso tudo? Bem, acredita-se que "muitas instituições estão profundamente preocupadas em propiciar o lazer de seus funcionários, oferecendo academias de ginástica, espaços 'zen' e áreas de entretenimento". Sendo assim, o primeiro ensaio de resposta me parece um tanto insatisfatório: os referidos "mimos" não garantem nenhuma efetividade na dosagem e na distribuição equânime do trabalho entre os funcionários, nem exime as organizações de manterem patamares de produtividade absurdos ou simplesmente inalcançáveis.

A segunda tentativa de resposta é oferecida na avaliação aparentemente crítica da especialista Priscilla Telles, gerente executiva da empresa Ricardo Xavier Recursos Humanos: "Não vejo as corporações preparadas para apoiar esses profissionais. Normalmente, as síndromes aparecem em função do excesso de produção. É um tema complicado, mas não vejo uma preocupação adequada. O primeiro passo, aliás, é não discriminar os indivíduos que passem por este tipo de problema".

Claro, sensores mais críticos acusaram logo de cara pelo menos mais duas meias-verdades infiltradas no meio do óbvio: que o excesso de produção cause a síndrome, isso já sabemos; que as corporações não estejam preparadas para responder ao problema, esta é outra constatação de uma evidência flagrante. A solução é que fica um tanto vaga: sim, não se deve discriminar o indivíduo. Mas, afinal, de quem é a culpa: das exigências internas do ambiente de trabalho ou da exigência auto-imposta pelo indivíduo? E se quisermos refinar ainda mais o argumento, poderíamos perguntar também em que medida essa exigência auto-imposta não é também um mero reflexo da carga excessivamente competitiva do ambiente profissional.

O desfecho da matéria não poderia ser mais desastroso. Além de falhar na descrição dos aspectos macrossociais da síndrome, ela busca explicações somente dentro do microcosmos das opções pessoais do indivíduo. Não é de se admirar, portanto, que a matéria termine com um guia de melhorias no âmbito da alimentação e da ingestão de líquidos: "A preocupação com a alimentação é essencial para evitar problemas intestinais e falta de disposição durante as horas de trabalho". Uma obviedade que ganha o vaticínio da nutricionista Luciana Harfenisst: "Estar bem alimentado é parte essencial do bom trabalho. A parte intelectual da mente processa melhor os dados quando tem os ingredientes necessários".

Comer bem, beber o suficiente para evitar desidratação, dormir 8 horas de sono por dia... Todas essas são obviedades que merecem, sim, serem repetidas todos os dias. Difícil mesmo é manter as meias verdades sob estrita vigilância, para que o diagnóstico e a consequente alteração das relações de poder no ambiente corporativo sejam mais eficazes. Mais difícil ainda é reconhecer a margem de manobra de cada indivíduo e sua real autonomia para definir um ritmo de trabalho mais justo e humano. Solução? Contra o "burnout", "agency"!

2 comentários:

  1. Seus textos sempre provocam a minha reflexão, Ju. Esse tema especialmente me fascina.

    Beijo e ótimo fim de semana

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