UA-89169382-1 Crônicas de Juvenal: Problemas de autoria indevida

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Problemas de autoria indevida

Para falar discutir ciência é preciso ter rigor e método. A frase até parece um disparate de tão óbvia, mas não é. A falta de clareza quanto aos aspectos metodológicos demonstrada em certos artigos de divulgação científica foi a conclusão à qual cheguei após ler o artigo publicado na Folha online intitulado "Um em cada cinco estudos médicos tem autor indevido" (http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/1001551-um-em-cada-cinco-estudos-medicos-tem-autor-indevido.shtml).

A matéria em questão replica dados de um estudo da Associação Médica Americana, que analisou seis periódicos internacionais de prestígio na área para chegar à seguinte conclusão: "Um em cada cinco artigos científicos das principais revistas médicas do mundo tem problemas de autoria".

Para quem chegou as franzir as sombrancelhas com o dado acima, cabe aqui algumas explicações. Duas classes de problemas de autoria são descritos no artigo: de um lado, a presença de autores "fantasma", "que participaram do trabalho, mas não são citados"; de outro, estão os chamados autores "indevidos", isto é, os "que assinam a pesquisa sem ter contribuído".

A questão, meu caro Watson, é saber como os autores do trabalho chegaram a essa conclusão. Uma subsessão da matéria, intitulada "metodologia", ficou encarregada dar o recado: "O levantamento dos dados da Associação Médica Americana foi feito por um questionário respondido por e-mail por 630 autores principais de trabalhos publicados em 2008 nas principais revistas médicas do mundo".

Como se teve acesso ao questionário e, portanto, à forma como a pergunta foi formulada para os autores principais, infelizmente teremos que trabalhar apenas com hipóteses de formulação do instrumento de coleta, tentando imaginar se são ou não são adequadas ao fim ao qual se prestaram.

Pois bem, a primeira pergunta que surge é de cunho estritamente ético: o que me garante que um autor que tenha incorrido em práticas de autoria indevida (ou que incorra regularmente) vá responder sincera e honestamente a um questionário que identifica esses mesmos delizes? Como a questão que está sendo formulada é de caráter intrisecamente ético e expõe o respondente ao julgo externo, o pressuposto de sinceridade na resposta deveria ser olhado com um olhos mais críticos e mais céticos. Não acreditar na neutralidade do instrumento de coleta - já que este pode interferir diretamente na realidade que tenta descrever - é o primeiro passo para se resguardar de uma visão que beira o "realismo" ingênuo.

O problema, por um lado, é que a matéria é superficial demais para que se tenha uma ideia mais palpável dos detalhes mais "técnicos" da enquete. Mas se o tal pressuposto de sinceridade tiver existido, isto é, se realmente acreditou-se que os respondentes falariam ou reconheceriam de maneira franca e aberta práticas que são comumente desqualificadas pelos parâmetros éticos do grupo ao qual pertencem, então a enquete já começou mal.

Mas vamos imaginar que este pressuposto não existiu e que se tentou, de fato, encontrar maneiras alternativas de identificar as práticas de autoria indevidas. Vamos imaginar, por exemplo, que ao invés de perguntar ao respondente se ele pratica ou já praticou este ou aquele ato eticamente condenável, passa-se a perguntar se ele tem conhecimento de alguém que o tenha feito. Esta formulação indireta é um pouco menos ingênua do que a primeira, mas não deixa de ter lá os seus próprios percalços: é que nessa fogueira de vaidades que é o meio acadêmico, apontar defeitos na publicação do seu concorrente ganha ares de "delação premiada".

Voltamos, portanto, à estaca zero: por falta de acesso ao instrumento de coleta, tecemos conjecturas que só podem ser respondidas com uma análise mais acurado do questionário empregado. A única coisa que se sabe, pela matéria, é que "os cientistas responderam a 30 questões sobre a definição dos autores dos estudos dos quais participaram. No resultado, 21% dos trabalhos apresentaram autoria indevida". E ponto final.

É claro que a matéria da Folha teve, pelo menos, o cuidado de procurar fontes no Brasil para discutir os problemas de autoria indevida. As questões levantadas pelas fontes brasileiras são pertinentes, mas nem por isso vão ao cerne da questão: como estes dados foram levantados pela Associação Médica Americana?

Uma coisa, no entanto, me parece certa: dificilmente alguém admitiria de maneira franca ter adotado práticas de autoria indevida, mesmo porque disso depende a sobrevida institucional do autor. Contar quando e como mentiu sobre a autoria de um artigo seria o mesmo que dar um tiro no pé; ou pior, seria matar a galinha dos ovos de ouro.

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