Ah, as ambiguidades! O que seria do mundo sem elas? No mínimo, seria um mundo com 50% a menos de piadas. E pelo menos uns 80% a mais de stress.
Que a publicidade brasileira sempre tenha explorado - e bem! - as ambiguidades da língua portuguesa, isso é fato sabido até pela minha finada avó, Dona Arlinda, que partiu dessa para melhor aos 94 anos. Mas existem ambiguidades e Ambiguidades, meu caro Watson. Isto é, existe algumas dignas de menção e reverência e outras que nos deixam perturbados.
A publicidade que expus logo acima (Revista Veja, 10-07-91, p. 52-53) é digna menção justamente por ter tocado em cheio nos meus brios anti-discriminatórios. Contudo, não vou fechar a questão sobre seu significado. Vou deixar a conclusão em aberto, na esperança de que o leitor amigo gaste pelo menos 5 minutinhos de seu precioso tempo para refletir sobre ela.
O título, a meu ver, leva a ambiguidade às últimas consequências: "A realidade é dura, negra, quadrada, estéreo e tem 29 polegadas", de acordo com o reclame. Obviamente, quis-se criar um estranhamento no leitor. E tal estranhamento se constrói numa continuidade de qualidades que supostamente descreveriam o substantivo "realidade". Ótimo, acho que todo mundo concorda com isso. A intenção da publicidade é realmente mostrar que a TV da Philco-Hitachi reproduz a realidade com o máximo de fidelidade possível.
Mas examinemos mais de perto o continuum dessas qualidades. O adjetivo "negra" é colocado entre dois outros termos com conotação claramente pejorativa. Ou alguém vai discordar que uma realidade "dura" e "quadrada" não tem nada de atraente? Pois bem, passemos logo ao ponto aonde quero chegar. Na verdade, esse alinhamento de qualidades parece sugerir uma continuidade de coisas ruins, que só surpreende o leitor quando as palavras "estéreo" e "29 polegadas" entram na jogada. Porque até então, todas as qualidades poderiam ser aplicadas a outras coisas que não uma TV.
Isto posto, tudo me leva a crer que a associação de qualidades com vistas a criar um estranhamento inicial - uma descrição da realidade tão negativa e incômoda - partia de um pressusposto básico: uma realidade "negra" não pretendia em hipótese alguma significar algo de bom. Não é à toa que ela vem acompanhada dos termos "dura" e "quadrada".
Concluindo: a meu ver, essa publicidade é calcada em um pressuposto sutilmente racista. Claro, nada, em princípio, atesta que o uso do termo "negra" carregue em si uma conotação negativa. Muito antes pelo contrário: é o contexto em que a associação de qualidades foi feita e o contexto em que ela vai ser lida que vão determinar se ela adquiriu ou não uma conotação negativa, naquele caso particular.
Diga-me com quem andas e lhe direi quem tu és, ó realidade negra! Ou será que são meus olhos que andam vendo demais???
A autora criou esse blog para divagar sobre o que lê diariamente nos jornais, com foco principalmente (mas não exclusivamente) na cobertura diária de ciência. Suas principais armas são a ironia de inspiração machadiana e um computador bacaninha (ela tirou o escorpião do bolso e comprou um de verdade). Ao citar alguma passagem, por favor, dê créditos para a autora: até para as grandes bobagens o direito autoral é inalienável.
quinta-feira, 30 de junho de 2011
No túnel do tempo da publicidade 9
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